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Mostrando postagens de abril, 2016

O rei de amarelo (Robert W. Chambers)

A coletânea de contos de Chambers foi organizada tendo como mote as suas histórias curtas que fazem alusão à lenda em torno ao Rei de Amarelo. Aparentemente, existe uma peça de teatro homônima que, ao ser lida, causa loucura, tentativas de suicídio e/ou perda completa da razão. Há toda uma mitologia sobre essa narrativa, que inclui nomes de lugares, uma lista de personagens associados a ela, datas, palavras-chave... Um mundo inteiro que, até então, era desconhecido para mim. As quatro primeiras histórias, que estão diretamente relacionadas ao mito, são muito interessantes. A que abre o livro, intitulada "O reparador de reputações",  é a minha preferida. Nela, é criada uma mini-distopia: um mundo aparentemente perfeito, mas que esconde muita discriminação e que possui uma espécie de ministério para apoiar os suicídios. Enfim, macabra. As últimas seis histórias, talvez com uma exceção, são apenas contos com possíveis alusões ao Rei de Amarelo, mas que pouca ou nenhuma

Cala a boca e me beija - crônicas (Alcione Araújo)

Este é o primeiro livro que leio deste autor que era, até então, desconhecido para mim - a ponto de achar que tratava-se de uma escritora, já que dele só conhecia o nome feminino. Foi uma boa porta de entrada para o universo de um cronista competente, sensível e de prosa agradável, que me animou a buscar mais obras de sua autoria. As crônicas são pautadas em motivos diversos, mas as que mais me agradaram (e que ocupam boa parte da obra) tratam de temas bastante universais: a vida, a morte, o amor, a leitura, a arte. O autor confessa o seu posto de voyeur da vida cotidiana, sempre disposto a escutar uma conversa de fila, uma briga de namorados, uma fala de criança. Com seu olhar atento aos detalhes, vai extraindo poesia e filosofia de uma aparente banalidade.  O único ponto que me incomodou um pouco nas crônicas foi uma certa visão estereotipada da mulher - ainda que, em princípio, os direitos femininos sejam defendidos ao longo dos textos. Também, obviamente, achei o tít

Os amores de Pandora (filme de 1951)

Considerado um clássico por alguns, este filme tem sim algumas características marcantes para a época em que foi lançado, principalmente no que dizem respeito à forma. Por ser a primeira produção a cores do diretor, aposta muito nos figurinos e nos cenários para construir uma narrativa visualmente interessante.    A trama é um amálgama de algumas lendas e estereótipos, sendo os principais o mito grego de Pandora, a lenda do navegador holandês e o clichê do toureiro espanhol. Obviamente, elementos tão diversos em uma obra com estrutura-padrão não casam bem. Em meio a uma história confusa e atuações simplórias, o que mais se destaca talvez seja a ousadia da personagem Pandora (que, de acordo com o enredo, teria suas aventuras amorosas ambientadas nos anos 1930). Até para os dias atuais seu comportamento chocaria a "gente de bem" - ainda que, no fundo, a personagem não consiga se libertar dos padrões que lhe foram impostos.

De gados e homens (Ana Paula Maia)

Depois de devorar "Sobre rinhas de cachorros e porcos abatidos", saí procurando na sequência outros livros da autora, que estão, felizmente, em sua maioria disponíveis para assinantes do Kindle Unlimited. Na minha tentativa recente de ler mais escritoras, inclusive, tenho percebido este fato: é relativamente fácil encontrar literatura feminina a baixos preços - em um mercado machista, os livros não vendem tanto com a assinatura de uma mulher. No entanto, ledo engano de quem pensa que esta obra corresponde ao estereótipo da escrita íntima e confessional feminina. Ana Paula Maia compõe sua narrativa de modo seco, cruel e neo-naturalista. Como o próprio Edgar Wilson, protagonista, conclui, ninguém fica ileso. Não há maniqueísmo possível em uma terra em que todos são responsáveis, em maior ou menor grau, pelo derramamento de sangue alheio. Ver os personagens das duas novelas de "Sobre rinhas [...]" encontrando-se de passagem nesta curta novela foi uma experiência

Ele está de volta (filme de 2015)

Imagine que Hitler reaparecesse em 2014 - é com essa premissa que trabalha este filme alemão polêmico, engraçado e doloroso.  A polêmica vem do fato de a película misturar ficção e realidade; boa parte da obra é construída com entrevistas reais, mostrando reações de pessoas comuns ao retorno do Führer. Gente que tem família, que defende os direitos animais, que se preocupa com o futuro do mundo... e que não se mostra de todo avessa ao retorno do nazismo. Os entrevistados realmente acreditam em suas verdades racistas, e defendem abertamente que o país se feche aos imigrantes, muçulmanos, negros... Apesar do tom mórbido das entrevistas, não deixa de ser uma comédia muito inteligente. Se vamos sentir o coração apertar com tanto preconceito real, também vamos nos divertir com a ridicularização de Hitler e da sociedade que o deseja de volta. Principalmente ao final, a obra mostra o tom mais ácido de sua crítica, com um discurso final de Hitler que é muito aplicável aos tempos que vive

Viagem ao céu (Monteiro Lobato)

Sim, este ainda é um livro infantil de Monteiro Lobato permeado de racismo e sexismo. No entanto, apesar de todas as opiniões polêmicas e infundadas do autor, ele foi pioneiro na literatura infantojuvenil brasileira, na campanha nacionalista do petróleo, na editoração... seus escritos devem ser contextualizados, mas negar sua importância histórica talvez não seja o caminho mais acertado. E, de qualquer forma, precisamos conhecer as obras daqueles que queremos criticar. Tia Nastácia, assim como Dona Benta, pouco aparecem neste livro, cujo foco são as aventuras espaciais das crianças do sítio - assim, ele se torna um pouco mais "palatável". E não deixa de ser interessante ver qual era a concepção do Universo um pouco antes da chegada do homem à Lua. Para despertar o interesse dos pequenos pro Astronomia, o livro é uma boa pedida. E mais uma vez destaco a importância de ele ser contextualizado em todos os aspectos, inclusive os físicos, já que os planetas e estrelas são desc

Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (Ana Paula Maia)

Ana Paula Maia? Você, muito provavelmente, nunca ouviu falar dessa autora - que já tem quatro livros publicados no Brasil. Que já foi traduzida para o alemão, o francês e o italiano. Que se inspira em Dostoiévski e Tarantino para escrever suas histórias. Que tem no currículo competências tão diversas quanto uma especialização em Computação, o roteiro de um filme, uma peça de teatro e uma faculdade de Comunicação Social. E que, por um acaso, é mulher e negra. O machismo é sim uma das problemáticas da literatura - recentes pesquisas mostram que mais de 70% dos escritores publicados são homens, e grande parte deles, brancos. Algumas escritoras, que recentemente foram galardonadas com prêmios importantes de literatura, não conseguem vender seus livros, pelo simples de fato de serem mulheres. Até a multimilionária escritora do Harry Potter teve de disfarçar seu sexo por meio de uma sigla para conseguir reconhecimento. Some-se a isso uma pele negra e veremos por que não se escuta falar de

Olhos azuis cabelos pretos (Marguerite Duras)

Um dos romances que mais me impressionou na adolescência foi "O amante", de Marguerite Duras - apesar da história curta, o modo particular de escrita da autora francesa ficou gravado na minha memória afetiva. Em "Olhos azuis cabelos pretos" já não senti tanta afinidade pelos personagens ou pelo enredo em si. Ainda que a narrativa de Duras continue sendo arrebatadora, e gere mais questões do que resolva-as, não senti uma conexão profunda com as paixões mal resolvidas de seus protagonistas. Trata-se de um livro muito pequeno, mas consideravelmente hermético. Seus personagens beiram o inverossímil ou, talvez, a loucura, em ações descoordenadas e entre pedaços de amor mal costurados. É potente, mas não me cativou.

O vento assobiando nas gruas (Lídia Jorge)

Como diz Inês Pedrosa na contracapa, o título deste livro é agreste - talvez pouco convidativo a princípio, mas que deixa margem para um mistério a ser descoberto. De onde vem a poesia que ressoa em nós após a leitura do nome da obra de Lídia Jorge, escritora praticamente desconhecida no Brasil? Apesar de parecer um tanto hermética, a obra nos chama a desvendar o segredo de sua "poeticidade" desde o mais elementar princípio. As primeiras páginas tampouco são fáceis ou esclarecedoras. Milene Leandro, protagonista (que, muitas vezes, se confunde com a voz do narrador), é alguém muito fora dos padrões socialmente estabelecidos. Ao início, suas atitudes parecem descabidas ou imaturas; contudo, essa impressão se mantém até sermos apresentados aos demais personagens da obra, hipócritas, manipuladores e, nem por isso, essencialmente ruins - apenas humanos. A delicadeza do olhar sobre Milene (cujas atitudes só terão uma justificativa plausível ao final do enredo) instiga e comove

O banheiro do Papa (filme de 2007)

Há algum tempo, viralizou nas redes a foto de um avô que fez 12 hambúrgueres para seus 6 netos, mas apenas 1 deles compareceu à janta. Com a forte crença de que a casa ficaria cheia, o velhinho esperou, diante dos pratos cheios, por muito tempo. Só ao final decidiu fazer a sua refeição decepcionado, com uma única parente a lhe fazer companhia. Se esta situação já é de cortar o coração, por expor a fragilidade emocional de um senhor idoso, imagine-a ampliada. Pense em uma cidade inteira, a esperar muito mais que 6 netos, e a sair dessa experiência quebrada economicamente, além de totalmente desiludida após a realização de um evento religioso. Quando o Papa João Paulo II visitou a minúscula cidade de Melo, no Uruguai, em 1988, houve um grande rebuliço entre seus habitantes. Na esperança de ganhar uns trocados, muitos deles investiram o que não tinham para montar barraquinhas de comida e fabricar enfeites religiosos. O filme nos traz este contexto e põe como personagem principal Bet

Como conversar com um fascista (Marcia Tiburi)

Um livrinho curto e poderoso. Apesar do título de quase autoajuda (em uma época em que qualquer auxílio para o diálogo é bem-vindo), Marcia Tiburi não se detém em soluções, mas, sim, em problematizar nossos tempos sombrios. A obra trabalha muitas questões atuais brasileiras, sem deixar de considerar o contexto mundial em que estamos inseridos. A autora vai além da dicotomia política pura e simples, analisando como aspectos mais subjetivos têm tomado conta do debate contemporâneo - a negação do saber, dos fatos, das provas; a imposição de uma opinião única, da qual não se pode discordar; o endeusamento do capitalismo, como se este fosse um sistema econômico que não traz problemas em nenhum lugar do mundo; e por aí em diante. Dos muitos aspectos abordados por Tiburi, o que mais me intrigou foi a questão do consumismo da linguagem. Usando o cenário político brasileiro como exemplo, a escritora vai revelando como, em tempos em que ninguém tem paciência para ler ou escrever, os pensamen

Poemas - Lírica Portuguesa e Tupi (José de Anchieta)

A imagem que me vem à mente ao pensar no período colonial do Brasil é a da exploração - índios dizimados, populações ameaçadas, imposição da cultura portuguesa etc. Assim, um escritor dessa época - ainda mais um jesuíta posteriormente canonizado - é algo que desperta a minha desconfiança antes mesmo de começar a primeira página de leitura. No entanto, apesar do meu receio, o organizador da coletânea de poemas conseguiu me convencer de que, afinal, Anchieta poderia ter sido muito pior, principalmente levando o contexto em consideração. Eduardo Navarro, responsável pela antologia, é um professor renomado no estudo das línguas indígenas no Brasil. Por fazer da cultura nativa brasileira o seu objeto de estudo, um elogio seu à figura do padre tem um peso muito maior. A breve biografia do "apóstolo brasileiro" contém dados interessantíssimos, que eu sequer imaginava. Dos seus poemas, apesar da temática repetitiva, uma ou outra estrofe se salva pela qualidade literária. Por fim,

O aluno (2010)

Sempre desconfio de produções relativamente grandes com temática africana - ainda que preguem o fim do racismo, a valorização da igualdade e afins, muito frequentemente o que vemos é o protagonismo de um personagem branco (que é retratado como bom o suficiente para defender os direitos de outra etnia - como se isso fosse uma escolha, e não um dever). Em obras como "Histórias cruzadas", "A boa mentira" e demais produções (recentes ou não) basta olhar a capa do filme para ver o peso da "bondade" branca.  Este é um filme majoritariamente inglês, ou seja, produzido pelos colonizadores do Quênia. No entanto, o retrato que a narrativa compõe é enviesado apenas na medida em que tenta defender a paz no presente - sem esquecer, mas também sem reacender conflitos antigos, seja com ex-colonizadores ou entre os grupos étnicos da nação. Ainda assim - e é aqui que a obra ganha pontos - o elemento branco não é retratado, de maneira alguma, como salvador.  O fato de b