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Mostrando postagens de março, 2017

*** Aguapés (Jhumpa Lahiri) ***

Consumimos muito do que vem da Índia - o yoga, a meditação, as roupas, os incensos, os temperos e até mesmo o festival das cores -, mas raramente admitimos essa irmandade. Ainda que separada por oceanos imensos, línguas múltiplas e mais de 330 milhões de deuses, esta nação oriental é marcada por muitos dos elementos que definem também nossa brasilidade. O (sub)desenvolvimento que nos aproxima no BRICS, a dança como expressão da cultura, os excessos (de gente, de crenças, de vivências), a corrupção, a desigualdade... são muitas as pontes que nos levam a essa cultura, tão diversa em sua unidade. Ao falar de pontes, coincidentemente me lembro do contexto de leitura de  Aguapés , que iniciei logo após finalizar  Dois irmãos , de Milton Hatoum. Centradas na mesma temática - as brigas e desencontros entre dois irmãos muito parecidos fisicamente  - as obras assemelham-se apesar de todas as fronteiras que existem ao meio.  Assim como Hatoum, Jhumpa também se utiliza das história de

Old Boy (filme de 2003)

Old Boy  pode ser interpretado, à primeira vista, como uma história de vingança e violência, pontuada por lutas marciais. No entanto, para conhecedores da tragédia grega, o filme se revela plenamente, em sua acepção mais ampla: trata-se de uma espécie de reconto do clássico  Édipo Rei , com o toque dramático que lhe cabe. Ainda que as conexões não sejam simplórias ou facilmente identificáveis, todos os elementos fundamentais da obra de Sófocles estão no longa-metragem: o incesto, a fuga do destino, o oráculo a propor enigmas, a máscara de dor que representa o gênero. Quando confrontada à tragédia, a produção sul-coreana ganha significados muito mais potentes e devastadores. Até os elementos hiperbólicos do filme se justificam quando comparados à obra de inspiração: afinal, o que é a tragédia senão um gênero de horrores físicos e emocionais? Mutilações, torturas e aproximação de um estado de loucura são alguns dos recursos utilizados pelos gregos para levar o espectador à cata

Fugitiva (Alice Munro)

Edgar Allan Poe defendia que o conto é um gênero para ser lido "de uma sentada só" - com um núcleo narrativo breve e intenso, não deveria ser fragmentado em leituras menores, sob o risco de perder seu impacto. Descumpri totalmente os preceitos do autor do Corvo durante meu primeiro contato com a obra de Alice Munro - e não me senti em nada desfalcada. Livro de reserva na bolsa, os contos de A fugitiva  me acompanharam por quase meio ano, em um processo de leitura intervalado e cheio de falhas, lacunas. No entanto, mesmo ao retomar a obra com semanas de afastamento, em meio ao enredo de um conto, conseguia rapidamente me lembrar da trama e acompanhar o desfecho de cada história. Talvez o fato de incluir os mesmos personagens em vários dos contos ajude a tornar a coletânea deste volume bastante notável, com personagens marcantes que demoram a se desvanecer da mente. Contudo, há algo além - algum elemento não identificado na escrita da canadense torna a incorporaç

Dois irmãos (Milton Hatoum) + Dois irmãos (Fábio Moon e Gabriel Bá)

Dois irmãos  é um livro indubitavelmente bem escrito. Com uma tensão constante, que se prolonga das páginas iniciais às finais da narrativa, Hatoum consegue deixar seu leitor em permanente estado de angústia diante dos conflitos de seus personagens tão humanos, tão falhos. Para compensar um pouco desta irremediabilidade da vida, o autor nos brinda com a doçura de seus regionalismos, que nos fazem mergulhar pelos afluentes do Amazonas. Os cheiros, os sons, os sabores do Norte do Brasil se mesclam perfeitamente à narrativa, em uma mistura equilibrada e surpreendente. Talvez primeiro escritor nortista a ganhar renome na academia e fora dela (com obras adaptadas pela TV Globo, por exemplo), Hatoum nos leva a conhecer um pouco mais desta parte do país - nosso único e diverso país. Sem ater-se à questão amazônica, o autor também explora referências libanesas, relatando um certo oriente que se incorporou ao topo do Brasil. Dois temas são bastante prementes na narrativa de Milton:

Pygmalion (George Bernard Shaw)

Pigmaleão é uma narrativa mítica, recontada por Ovídio, que centra-se na história de um escultor apaixonado pela própria obra. Assim como o seu contraponto romano, o professor Higgins, um dos protagonistas da peça de George Bernard Shaw, se encanta pela conversão que realiza: transformar uma humilde vendedora de flores, com uma linguagem cheia de jargões, em uma dama da alta sociedade.  Escrita em 1913, a obra tem claramente um viés de preconceito linguístico e social forte. Contudo, além de precisarmos ter em mente o contexto em que foi escrita, uma leitura atenta das entrelinhas revela o senso crítico do autor, diante do qual todos os valores da sociedade convencional se desmoronam. Realmente me encantei com este curto livro. Ademais do humor leve (e por vezes até um pouco pastelão, sempre muito divertido), ele enseja reflexões interessantes. Como professora, meu questionamento imediato foi: até que ponto um educador tenta transformar seu aluno no que deseja, ao invés d

O sexto sentido (filme de 1999)

Difícil analisar um filme a que só assistimos depois de virar meme; toda a gravidade e méritos do enredo de reduzem a um post de facebook, uma imagem viralizada, vazia e sem conteúdo. Talvez a obra até tenha seu valor; para mim, que não entro na onda de filmes de fantasmas, pouco ou nada surpreendeu. O ponto mais interessante da trama é o seu final. No entanto, ainda que a reviravolta seja grande, trata-se, no máximo, de uma história sendo contada de forma bem amarradinha. Não há muito a extrair do longa, além de um ou outro sustinho.

História do amor no Brasil (Mary Del Priore)

A história do cotidiano costuma me encantar. Acho fundamental (inclusive no ensino escolar) que este viés mais social, focado na construção do dia a dia, sempre esteja presente no retrato de uma época, seja ela qual for. Afinal, são as pessoas que fazem a história - camponeses, artesãos, escravizados, feitores, agricultores... muito mais do que uma dezena de reis isolados na Europa. Mary Del Priore é uma autora bastante conceituada nesta área, com várias publicações sobre a intimidade e os modos de viver do povo brasileiro. Entretanto, t alvez esta história do amor seja, dentre os livros que conheço de sua autoria, o que menos me surpreendeu.  Em nenhum momento o livro deixa de ser interessante ou embasado historicamente; contudo, muito do que se diz e se pesquisa na obra já são informações conhecidas. Foram poucos os trechos que despertaram de fato minha curiosidade ou revelaram alguma peripécia amorosa da qual nunca havia escutado falar. No geral, é um bom livro de intr

Personal shopper (filme de 2016)

Se sobrava alguma dúvida de que Kristen Stewart é uma atriz sem expressão, este filme não deixará mais incertezas. Aliás, todos os demais atores e atrizes do longa parecem ter sido contaminados por sua falta absoluta de emoção, catarse, demonstração de algum sentimento. Com atuações péssimas, algo poderia ter se salvado caso o enredo, a fotografia ou a música fosse interessante. No entanto, não é o caso para nenhum dos três itens. Boa parte da fotografia se resume à atriz andando perdida por alguma casa. Ela vai, ela volta, ela tira a roupa, ela coloca outra roupa, vai e volta de novo. É isso. O enredo é péssimo - versa sobre fantasmas e tenta ser sério com efeitos especiais desprezíveis. A música só aumenta o tom pastelão/inverossímil da história. Enfim, horroroso.

Gramática expositiva do chão (Manoel de Barros)

O título deste breve conjunto de poemas de Manoel de Barros não é acidental. De fato, a organização do trabalho poético por conjunto de temas ("Protocolo vegetal", "O homem de lata", "A máquina de chilrear e seu uso doméstico" etc.) cria uma atmosfera de tratado, gramática de assuntos a serem abordados na obra. Claro que a linguagem subversiva e tão afoita às regras de Manoel vai muito além da catalogação dos poemas por assunto. No entanto, ainda que lidando com este óbvio ululante, o fato é que este foi o livro do mato-grossense de que menos gostei até agora. Um certo ranço de tratado permanece na obra, ainda que seja tão somente na disposição dos assuntos ao seu decorrer. A parte final, já menos vinculada à separação de temáticas, me pareceu mais interessante. Trata-se de um livro bastante fino e peculiar no conjunto da obra de Barros, mas não deixa de ser uma ótima experiência de leitura poética.

O quarto de Jack (filme de 2015)

Uma história de cativeiro e liberdade - O quarto de Jack  é um filme delicado, que sabe explorar tanto a claustrofobia quanto a reintegração de uma família sequestrada à sociedade. Com um mote simples, aborda as reverberações psicológicas de um rapto, com enfoque em Jack, criança gerada pelos estupros recorrentes de sua mãe. Uma das principais temáticas do enredo são as construções sociais do menino. Criado em cativeiro, é convencido pela mãe de que o mundo se resume ao quarto do sequestro. Após a fuga, é preciso reeducar a criança não só a saber diferenciar a realidade dos mitos, como também a confiar nos adultos. O processo de inserção de Jack no mundo real é bastante doloroso, e impacta toda a família a seu redor. Negado por alguns parentes por ser filho de um criminoso, o menino é também alardeado pela imprensa como o grande salvador da mãe - no meio de avaliações diversas e extremas, ele aprende a construir sua personalidade e a se integrar a um mundo ao qual jamais ha

Tempos de reflexão - de 1954 a 1989 (Nadine Gordimer)

Nadine Gordimer é uma escritora de mão cheia - não é sem mérito que levou o Prêmio Nobel em 1991. O livro Tempos de reflexão - de 1954 a 1989  é uma coletânea de ensaios publicados pela autora em veículos diversos, todos escritos em uma época ainda pré-apartheid. A edição da Biblioteca Azul, ainda que muito bonita, pouco ajuda o leitor no trabalho de contextualizar textos escritos há mais de meio século em um continente e situação política extremamente diversos dos nossos. A falta de artigos de apoio ou mesmo das boas e velhas notas de rodapé torna a leitura mais difícil, especialmente para leitores preguiçosos (assim como eu). São muitas as referências que são quase incompreensíveis para um brasileiro - ao longo da leitura, desisti de pesquisar as personalidades e dados históricos utilizados por Nadine para tecer suas reflexões. E, devo confessar, essa preguiça tornou boa parte do livro bastante desinteressante para mim - uma vez que girava em torno de assuntos dos quais nada s

Estrelas além do tempo (filme de 2016)

Hidden Figures  é um título simples, mas que traz a essência do que escapou na tradução para o português: o ocultamento, a invisibilidade dos negros na sociedade estadunidense. Centrado na biografia de três grandes cientistas da Nasa, o longa discorre sobre as questões raciais de modo sério, mas sem contrapôr-se ao gênero da obra, muito próximo da comédia. Algumas idealizações ao longo da produção são um tanto incômodas, principalmente quando realçam a figura do branco-bonzinho. O primeiro passo para combater o preconceito não é dividir a sociedade entre pessoas boas e más; pelo contrário, trata-se de reconhecer e controlar o ódio pelo diferente que existe em cada um de nós, sem exceções.  Ainda que combine com o tom mais despojado da comédia, a trilha sonora pop desvia a atenção da temática principal do filme. Claro que não é por tratar de questões raciais que uma obra precisa ser séria, sem liberdade para passear por distintos gêneros; no entanto, por vezes falta um elemento

Historia del rey transparente (Rosa Montero)

De Rosa Montero, já havia lido A louca da casa , romance disfarçado de autobiografia que engana o leitor, levando-o a confiar em uma narradora ambígua, fugaz, contraditória. Bastante curta, é uma obra extremamente bem acabada e que desperta a curiosidade para conhecer a autora da deliciosa vida inventada. Historia del rey transparente , na contramão, é um romance extenso - cerca de 600 páginas - e com um ambiente totalmente distinto. Situado na Idade Média, por volta do século XII, traz as figuras de cavaleiros andantes, feiticeiras, castelos, guerreiros das Cruzadas em um enredo de aventura e resistência. Também dialoga com tradições já conhecidas, como as histórias da Távola Redonda. Leola, personagem anfíbia, é uma aldeã que, para fugir das guerras, se veste com a armadura de um cavaleiro morto nas batalhas. A partir deste fato, oscila entre o masculino e o feminino ao longo de toda a trama, conforme as necessidades do contexto e suas próprias ânsias. Sem definir-se perempt

A garota dinamarquesa (filme de 2015)

Com uma abordagem delicada sobre a questão transgênero, o filme A garota dinamarquesa  consegue colocar em xeque preconceitos, ao mesmo tempo que resgata dados biográficos de Lili, primeira a realizar uma cirurgia anatômica de mudança de sexo biológico. A fotografia e a trilha sonora contribuem para a criação de uma estética condizente com os anseios da protagonista - o desejo de Lili por tecidos suaves e delicadezas se reflete na paleta de cores da filmagem. Ademais, como, na vida real, tanto Lili quanto sua esposa eram artistas plásticas, o longa consegue recuperar um pouco deste ambiente artístico da Dinamarca do século XX.  A atuação de Eddie Redmayne é outro dos pontos fortes da produção - o ator consegue transformar sua personagem em alguém cativante, despertando a empatia do espectador. E, no fim das contas, é este o primeiro e mais importante passo para entender o outro: estar disposto a escutar sua história.

Humano (documentário de 2015)

2000 entrevistados. 60 países. Mais de 20 línguas faladas. Na versão estendida, cerca de 4h30 de duração. Nota 8,7 no IMDB. Lançado em 63 idiomas. Se todos esses dados parecem hiperbólicos, não é para menos: afinal, o tema deste documentário é a nossa enorme, complexa, injusta, sofrida, alegre humanidade. Começo pela fotografia, que é um dos muitos atributos desta película. As entrevistas são feitas contra um fundo preto, mostrando apenas o rosto do falante, o que tange toda a nossa concentração para o seu discurso, o valor inigualável de suas palavras. No entanto, entre uma entrevista e outra, na mudança de temas, há a inserção de imagens panorâmicas preciosas. Ora revelando um pouco das belezas desconhecidas do planeta, ora servindo de contraponto às entrevistas, as filmagens de paisagens são absolutamente incríveis - dariam, por si só, um filme.  Os temas, na versão estendida, são vários: passeiam pelo amor, perdão, religião, liberdade, violência e terminam com uma per