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Mostrando postagens de maio, 2017

A eternidade e o desejo (Inês Pedrosa)

Quem embarca na leitura de "A eternidade e o desejo" envolve-se em dois amores: um, pela escrita moderna, reflexiva, fluida de Inês Pedrosa; outro, pelo tom argumentativo e convincente do padre Antônio Vieira. Uma das paixões é validada pela eternidade dos sermões do português, que sobrevivem (com atualidade) cinco séculos após sua feitura; a outra paixão vai ao encontro do prazer que a narrativa da escritora nos provoca, tão afeita ao nosso tempo, aos nossos dilemas; paixão pelo desejo, portanto. E como já adiantou Vieira, lá por meados de 1600: "Para falar ao vento bastam palavras, para falar ao coração são necessárias obras". A obra de Inês Pedrosa, em um resumo sem compromisso, pode até parecer a trama de um livro paradidático; afinal, o que a protagonista da história (Clara) faz é nos apresentar um autor clássico pelo viés da contemporaneidade. Ao embarcar em uma viagem pela Bahia, a personagem busca entender os seus dilemas pelas palavras do padre - apenas e

Coração, cabeça e estômago (Camilo Castelo Branco)

Minha última leitura de Camilo havia sido ainda na época do vestibular: o sofrível "A brasileira de Prazins". Sem ter estudado nada do autor na faculdade, foi com um pouco de receio que mergulhei neste título metonímico - e, para a minha surpresa, não foi sem prazer que o fiz. Ao tecer críticas muito ácidas ao Romantismo (sendo que este livro foi publicado no mesmo ano do choroso "Amor de perdição"), o autor se mostra versátil, com um olhar sarcástico sobre a própria escrita e, acima de tudo, bem à frente de seu tempo. Ainda que seja quase que unanimemente rotulado como ultrarromântico, um livro como "Coração, cabeça e estômago" bota toda a classificação literária relativa ao autor em xeque. O aspecto que mais me interessou no livro, contudo, é exterior a ele: me encantou ver paralelismos possíveis entre este romance e o "Memórias póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis. Uma leitura atenta deixa muito visível o quanto o nosso brasileiro

Palavra e utopia (filme de 2000)

O padre Antônio Vieira foi uma das figuras mais interessantes do séc. XVII - com um poder de eloquência surpreendente, viajou pelo mundo (em uma época em que as rotas marítimas eram aventuras, muitas vezes, fadadas ao fracasso) pregando a palavra dita divina com a desenvoltura e a erudição aprendida nos clássicos. Não é de estranhar que sua história continue tendo tantas reverberações, ainda que 4 séculos depois de sua morte. Manoel de Oliveira, diretor português famoso por adaptações literárias, constrói um filme que, se é belo em algumas cenas, é também duro, quase incompreensível em outras. A narração dos fatos do longa-metragem exige, do espectador, uma certa compreensão antecipada dos fatos e das obras de Vieira. Assim, não é uma produção didática ou de apresentação, mas sim um cinema feito para iniciados na linguagem deste barroco. Ainda que facilitar um enredo possa descambar em uma superficialização da trama, acredito que Oliveira tenha perdido uma ótima oportunidade de tor

O silêncio do lago (filme de 1988)

Um suspense que trabalha com alguns dos nossos maiores medos, sem mostrar uma gota de sangue - este é o plot  básico de O silêncio do lago , obra holandesa de quase 30 anos, mas ainda extremamente atual nas neuras e aflições que aborda. Sem ser necessariamente cronológico, o filme passeia entre diferentes momentos da narrativa, com foco alternado entre os dois protagonistas. Ainda que, em uma leitura mais superficial, possamos classificar esses personagens como vilão e herói, o fato é que eles compartilham algumas características no decorrer da trama - como se um fosse o duplo do outro. A ligação entre o começo e o fim da longa, que remete à ideia do círculo, do ciclo, é trabalhada por meio de metáforas visuais bastante interessantes. O final surpreendente, que dura poucos minutos em tela, é arrebatador. Enfim, um filme pavoroso por opção de gênero, e não por falta de estilo.

Conversas com um jovem professor (Leandro Karnal)

O título mais acertado para a obra de Karnal seria: Conversas com quem deseja ser professor. Para quem já está na área, o panorama que o autor apresenta é bastante conhecido (isso quando não está desatualizado). Renomado por seus vídeos questionadores, o escritor aparenta não ter o mesmo potencial provocativo na escrita; poucas vezes sai do óbvio e, em muitas, beira a autoajuda. Karnal também não inova; ainda que reveja sua prática como professor ao longo dos anos, não chega a repensar o modelo como um todo, a buscar novas possibilidades de ensino. O ponto mais interessante do livro (e que supera muito em qualidade todo o demais be-a-bá de como dar aulas) são as indicações de filmes sobre a profissão. Afinal, o autor parece só funcionar mesmo atrás das câmeras, ou falando sobre elas.

The Freedom Writers Diary (with Erin Gruwell)

Ademais de ser o livro que serviu de base para o filme Escritores da liberdade , este é um relato real de experiências educacionais dentro e fora da sala de aula, na voz de 142 estudantes e da professora-motivadora. Erin Gruwell é uma profissional altamente inspiradora (quase no limiar entre a vocação e o papel de mártir), que realiza um esforço gigantesco em prol da aprendizagem de adolescentes em situação de risco. O resultado é um livro tocante, forte - e produzido pelos próprios alunos durante suas aulas de língua inglesa. O longa-metragem inspirado nessas páginas, apesar de ser muito bem realizado, peca por uma ou outra idealização em relação ao ato de ensinar. O livro, um pouco mais cru, não esconde os problemas enfrentados por essa professora, muito mais humana que super-heroína. Aqui temos o relato de quando ela pensou em desistir da turma, confissões de alunos usuários de drogas, reclamações em relação à aula ou aos outros estudantes... Tudo o que no filme é perfeito, aqui é

Sonetos de Camões (Antonio Medina Rodrigues)

A série Princípios, da Editora Ática, já salvou muitos estudantes (inclusive universitários) de avaliações negativas. O segredo? Oferecer temas complexos por meio de uma abordagem leve, sem ser, necessariamente, mastigada ou superficial. O ponto-chave é trocar em miúdos o que é macro, amplo, de difícil compreensão. A análise dos sonetos de Camões, por Antonio Medina Rodrigues, é um exemplo desta forma de trabalhar da coleção. Ainda que não se proponha a fazer uma análise minuciosa de cada um dos mais de 200 sonetos do bardo português, o autor oferece um panorama histórico que, mesmo que breve, facilita muito a compreensão da lírica em questão. Ao longo de todo o texto alguns poemas são interpretados e, ao final da obra, há um pequeno "apêndice" com a análise específica de alguns outros sonetos. É um facilitador - e também um incentivo.

Escritores da liberdade (filme de 2007)

O roteiro é batido: a professora inexperiente diante de uma turma de alunos de baixo rendimento e, por vezes, bastante agressivos. No entanto, o cenário de qualquer escola periférica passa, no geral, por estes mesmos problemas - e como não falar de clichê quando lidamos com a estrutura centenária dos colégios, que ano após ano repetem os mesmos erros, os mesmos planos de aula, as mesmas atividades, sem olhar para o aluno que têm diante de si? Talvez o maior problema do filme não seja tanto a temática - que, de tão verdadeira, é inspirada em um caso real -, mas a excessiva idealização da professora. Não são críveis as biografias sem falhas. Assim, ao desconfiarmos da verossimilhança da protagonista, podemos colocar em xeque a obra como um todo. Apesar dessas questões estruturais, o longa consegue emocionar (especialmente aos que trabalham na área da educação). Ao vermos uma professora inspirando o amor pela leitura, abandonamos todos os defeitos do filme em um canto para nos en

David Copperfield (série de 1999)

Anterior a Harry Potter, mas com Daniel Hadcliffe e Maggie Smith no elenco, a série conta com a qualidade BBC na adaptação de obras literárias. Ainda que, em um ou outro ponto o texto não seja tão fiel ao original, no geral tem-se uma boa releitura do clássico. O recursos técnicos contribuem bastante com a qualidade: cenário de época, boa fotografia, trilha sonora... no entanto, cumpre destacar também as atuações, que, no geral, são muito boas. O ator que interpreta Heep (uma espécie de vilão da história) é quase que mais verossímil que o seu par no romance de Dickens; algumas características do personagem, que eram difíceis de imaginar ao ler o livro, se tornam mais claras com a excelente atuação. Para quem já conhece o original, é um bom meio de rever a miríade de personagens da obra de mais de 1000 páginas. Para quem não o leu, talvez seja uma forma de aproximação, ainda que a máxima ainda seja válida: o livro é muito melhor.

David Copperfield (Charles Dickens)

Romance vitoriano, David Copperfield  atende às características da literatura da época: conflitos morais, personagens que lidam com dificuldades econômicas, exaltação do trabalho, oposição entre classes sociais, entre outras. Ademais, como grande obra de gênio, vai muito além das prerrogativas de seu tempo. Ainda no prefácio, temos acesso a uma declaração do autor afirmando que Copperfield é o seu romance (e personagem) favorito. Essa preferência não é de surpreender, considerando os vários traços biográficos presentes no romance; o protagonista é considerado, por muitos, como uma espécie de alter ego  de Dickens. Obra de fôlego, com cerca de 1300 páginas, retrata o período de formação do personagem, desde o nascimento até à vida adulta. Ainda que tenha sido acusado de superficialidade e idealização, o romance conquistou fãs do calibre de Virginia Woolf e Dostoiévski (que o leu na prisão). Se há um elemento que talvez justifique a imortalidade desta narrativa, provavelmente