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Mostrando postagens de setembro, 2017

Sonetos del amor oscuro/Diván del Tamarit (Federico García Lorca)

Federico García Lorca, assassinado pelas forças fascistas durante a Guerra Civil Espanhola, carrega o estigma de artista mártir. Como os jovens suicidas (lembremos de Sylvia Plath e David Foster Wallace), por vezes uma crítica menos especializada atribui o sucesso de sua obra mais às condições trágicas de sua morte do que ao seu valor literário. Um dos meus dramaturgos mais queridos, com uma força de expressão teatral poucas vezes vista, Lorca também é o autor de versos carregados de símbolos, metáforas, alegorias. Ao contrário de suas peças, com uma linguagem mais direta (ainda que não menos carregadas de profundidade), seus poemas são quase herméticos, mesmo em livros curtos - caso dos "Sonetos del amor oscuro" e "Diván del Tamarit". Com construções quase insólitas ("as imóveis caveiras dos cavalos", "a paisagem de osso"), a poética de Lorca é intrincada, quase labiríntica. Cada sentido desvelado encaminha a outro verso, por vezes mais enig

Falando o mais rápido que posso (Lauren Graham)

Com o subtítulo "De Gilmore Girls para Gilmore Girls", o livro é bastante voltado às fãs de carteirinha da série, sem muitos atrativos fora esse. O que é interessante é ver a capacidade de atuação de Lauren, que me pareceu mais interessante enquanto profissional... enfim, ao menos na escrita o seu estilo é pedante e cheio de piadinhas sem graça. Ainda fico com a ficção e com Lorelai.

Neve Negra (filme de 2016)

Mais uma excelente obra na minha filmografia particular de Darín, "Neve Negra" trabalha com um suspense envolto em drama familiar, não muito bem explicado ao espectador em um primeiro momento. A trama vai crescendo, espalhando pistas, aguçando a curiosidade de quem a vê para culminar em um final surpreendente e quase aberto, passível de variadas interpretações. Com roteiro baseado em romance homônimo do jovem escritor  brasileiro Santiago Nazarian, o enredo me lembrou, de fato, outro conterrâneo: há um quê da loucura e da prisão familiar da "Lavoura Arcaica", de Raduan, nesta narrativa. A neve negra na Patagônia Argentina, em um filme de suspense, implicou um trabalho belo de fotografia - o que torna o conjunto ainda mais interessante. Não é o meu preferido do ator, mas tem sim o selo de qualidade Darín.

A cidade e as serras (Eça de Queirós)

Durante muito tempo "A cidade e as serras" foi o meu livro menos querido na lista clássica do vestibular - e, por isso, sempre evitava dar aula sobre a obra. No entanto, ao não ter outra saída senão encarar o romance novamente este ano, qual não foi a minha grata surpresa ao me deparar com uma narrativa divertida, irônica e reflexiva. Para dizer em outras palavras: eu me jacintei. A crítica de Eça aos excessos burgueses não fazia sentido na minha vida no primeiro contato com a obra; agora, mudados os contextos pessoal e histórico, pude assimilar muitas das indiretas do português para o meu próprio estilo de vida. Jacinto não só é um rico envolto pelo luxo; é (assim como muitos de nós, da era da informação) envolvido por muito mais do que consegue acumular. Sua agenda lotada não lhe deixa tempo para aproveitar cada encontro; possui 70 mil exemplares na biblioteca, sem vontade de ler nenhum; compra quinquilharias tecnológicas que rapidamente deixam de funcionar ou se transf

Family Sayings (Natalia Ginzburg)

Uma família se faz de sangue e palavras - e é este último aspecto que norteia o excelente livro de memórias da italiana Natalia Ginzburg. Com um olhar acurado sobre o passado, ela vai retomando as histórias do seu núcleo ao mesmo tempo que resgata os jargões criados nesse ambiente. E o que é fenomenal nessa ideia é o quanto ela tem de universal; afinal, quantos de nós não reconhecemos parentes próximos e distantes por expressões familiares, ditos espirituosos, histórias quase míticas? Além do recorte belíssimo sobre a sua árvore genealógica particular, outro mérito da autora é a a linguagem. Ainda que não se trate de uma escrita seca, a prosa de Natalia é muito objetiva, aparentemente desprovida de metáforas ou de reflexões profundas. No entanto, esta aparente superfície de racionalidade e distanciamento ergue-se sobre um terreno cheio de camadas, plurissignificativo. Afinal, este é um livro sobre raízes. Pequenas descrições, sutis, conseguem criar um retrato amplo e complexo das p

Novos poemas (Drummond)

Publicado apenas três anos antes do livro mais desolador de Drummond ("Claro Enigma"), "Novos Poemas" parece vir na ressaca de "A rosa do povo". Com um olhar que já não traz a mesma esperança utópica da obra anterior, ainda assim este livro curto de poemas gira em torno da questão da empatia, do entregar-se ao outro. O primeiro poema da obra (como sempre são fortes as aberturas em Drummond!) é intitulado "Canção amiga" não por acaso. Este conjunto poético tem por função reconhecer-se no próximo, levar empatia a quem possa: à mãe da garota desaparecida, aos cidadãos sob regimes ditatoriais, aos mártires de guerra. É uma obra de acolhimento, ainda que desesperançado. O texto que encerra a obra é um poema em prosa ("O enigma") e antecipa não só o título, mas o tom já mais sombrio da coletânea posterior. E a pedra no caminho drummondiana permanece, mesmo nesta obra feita de empatia: "Mas a Coisa interceptante não se resolve. Barra

Oops! (Kevin Johansen/Liniers)

Na sequência de "Bis" (dos mesmos autores), este livro vem também suprir uma espécie de lacuna para quem era colecionador de discos ou CDs - trata-se de um encarte ricamente ilustrado para as canções da banda de Kevin Johansen. As entrevistas e fotografias deste volume são ainda mais tocantes do que as da publicação anterior; é muito gostoso acompanhar o processo de criação de artistas de diferentes linguagens, que privilegiam um diálogo honesto entre suas produções. Um dos livros mais lindos da minha estante, e com conteúdo que nada deixa a desejar. Afinal, Kevin é um dos maiores letristas e Liniers, dos melhores quadrinistas do mundo latino.

Estudos de língua oral e escrita (Dino Preti)

Este talvez tenha sido o primeiro livro que comprei para a faculdade, e que nunca terminei de ler - iniciando, assim, uma grande e interminável saga de leituras pendentes. É também quase um documento histórico dos meus hábitos de leitura - adquirido com um dinheiro muito suado, é um livrinho que encapei com plástico transparente, que grifei usando só lápis - e régua - e que levei para o autor autografar. Ou seja, muito distante do casos de orelhas, papel amassado, lombadas rasgadas que é minha estante hoje - ainda que tudo faça parte de um mesmo processo, da minha formação como leitora. Um dos motivos de esta obra ter quase que inaugurado a minha pilha de leituras incompletas é o fato de que, mesmo na faculdade, eu sempre ter tido a impressão de que o discurso da sociolinguística, por vezes, é um tanto repetitivo. Se essa é apenas uma impressão de leitora quase leiga, ela infelizmente se reforça na coleção na qual o livro se encaixa. A série "Dispersos" busca reunir textos

Limón Blues (Anacristina Rossi)

Há algum tempo comecei um projeto de leitura - para a vida - de tentar descobrir escritoras de diferentes países, para ser apresentada a novas vozes e anseios, escapando do cânone europeu, macho e branco que tanto nos rege. Se, por um lado, a ideia me proporcionou maravilhosas experiências de leitura, por outro me defrontou com um problema: diante de uma ainda rara publicação de literatura de autoria feminina, como ir em busca do que é diverso? Explico-me: boa parte das minha leituras até agora, principalmente quando focadas em países subdesenvolvidos, conta a história de mulheres refugiadas. Em nações em que as mulheres não têm voz, o destino parece ser invariavelmente o mesmo. Ainda que isso me faça esbarrar com excelentes obras no meio do caminho (como "Americanah", de Chimamanda), sinto falta de outras possíveis temáticas, de conhecer a força dessas escritoras para além da sua condição de migrantes. "Limón Blues", de Anacristina Rossi, me proporcionou o que

Listas extraordinárias (Org. Shaun Usher)

Com o mesmo projeto gráfico, o mesmo organizador e quase o mesmo título de "Cartas extraordinárias", esta antologia de listas despertou o interesse do público que já conhecia o trabalho de Shaun Usher. No entanto, enquanto a antologia epistolográfica prezou pela qualidade literária, aqui a seleção se pauta mais pelo eventual interesse histórico que essas listas, tratadas como documentos, podem despertar. Ou, em outra palavras: para bom apreciador da literatura, este é um livrão chato de ser lido - e não há projeto gráfico mirabolante que dê conta de tornar essa obra mais interessante. Não se trata de uma generalização absoluta; algumas listas da coleção são realmente tocantes, divertidas, e criam um pacto de intimidade com o leitor. Delas são exemplo as regras de Susan Sontag para criar um filho, as listas de livros favoritos de alguns escritores, as técnicas de escrita de Jack Kerouac, a lista de símiles de Raymond Chandler, os conselhos de Tchekhov a seu irmão... mas, som

Paterson (filme de 2016)

O trailer de Paterson adianta vários pontos que merecem atenção durante a obra - assim, fui assisti-la com o olhar de quem procura pistas, ganchos soltos, significados nas entrelinhas. Ainda que, de certa forma, esta busca por verdades absolutas no filme possa ter me frustrado um pouco (afinal, este longa não segue os padrões e clichês típicos do cinema, esperados pelo espectador), ela também me ajudou a direcionar meu foco para os pequenos detalhes de cada cena - que são o que realmente importam. Assim como ocorre nos contos de um dos meus escritores preferidos, o russo Tchekhov, este é um enredo em que nada acontece. O objetivo não é criar uma trama astuciosa ou mirabolante, mas elaborar um retrato mais fiel e delicado da vida, com todas as suas incertezas e fragilidades. É uma obra elaborada com paciência, assim como os poemas do protagonista; uma expressão de uma subjetividade rica, mesmo que presa às rotinas (por vezes cansativas, massacrantes), formulários, burocracias... É

Patativa do Assaré - o sertão dentro de mim (Tiago Santana; Gilmar de Carvalho)

O livro é o resultado de uma entrevista amorosa, feita com o cuidado de quem conhece seu entrevistado e evita as perguntas do senso comum jornalístico. Gilmar de Carvalho narra como conheceu Patativa (e seu deslumbramento diante daquele homem nomeado pássaro) e como lidou com as constantes respostas evasivas do poeta, quase sempre metamorfoseadas na forma de versos, de forma a ludibriar os jornalistas. Construído na forma de um ABC de prosa (em referência à modalidade de cordel que usa estrofes iniciadas em A e terminadas no Z), o relato mantém a coerência e uma certa linearidade, mostrando um domínio do método escolhido para contar um pouco sobre quem foi Patativa. Ainda que o livro seja relativamente curto, seu texto deixa entrever um trabalho profundo sobre a vida e a obra do poeta cearense. Assim, são indicadas várias referências, em meio ao discurso, que revelam outros estudos e admiradores da poesia de Patativa. Acompanhado de belas imagens de Tiago Santana, o livro é uma ó

O cidadão ilustre (filme de 2016)

Esta é uma história de muitos enredos, subtramas, metáforas e reflexões - e, não por acaso, o seu tema principal é uma discussão sobre o fazer literário e o ser escritor na contemporaneidade.  Um escritor argentino, radicado há 40 anos na Europa e vencedor do Nobel, recebe um convite para regressar a sua cidade natal para participar de conferências sobre literatura. Inicialmente relutante, acaba aceitando a proposta - que, muito mais que um breve passeio, se revela um retorno às verdadeiras origens do ser. Uma vez em seu solo, novamente territorializado, o protagonista já não consegue manter o ar frio e distanciado de sua persona  europeia; o pampa argentino exige dele a aceitação divertida do kitsch , a afetividade exacerbada, o erotismo confidente, o enfrentamento de velhos traumas. É uma bonita metáfora dos nossos reencontros ao longo da vida - com o outro e com o nosso eu. Ainda que a Argentina seja retratada como esse lugar de afeto-desafeto, em que alegria e pesar são separ

Lendo Tchekhov (Janet Malcolm)

Tchekhov foi meu amor literário à primeira vista, em uma época em que meu gosto pelos livros se reduzia a best-sellers  e detetives duvidosos. Meu primeiro exemplar dos contos do autor (uma versão pocket  resgatada de um ferro-velho, com uma tradução indireta), ainda que extremamente simplório, foi o suficiente para despertar não só o meu interesse por esse escritor em específico, mas por vários de seus conterrâneos e, consequentemente, por uma literatura mais profunda, que exige mais do leitor - e que dá muito mais em troca. Dividido em duas partes, o livro começa com um relato da excelente jornalista Janet Malcolm sobre sua relação com a obra tchekhoviana. Em viagem pela Rússia, ela visitou não só os lugares significativos na vida do autor, mas também aqueles que teriam sido frequentados por seus personagens. Em meio a esse percurso, Malcolm vai nos dando um panorama da Rússia contemporânea - cheia de figuras que poderiam muito bem se encaixar em um enredo de Tchekhov. A segunda