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Mostrando postagens de outubro, 2017

A Ghost Story (filme de 2017)

Nada mais natural que um filme, cuja temática é a morte, exija paciência do espectador. Afinal, aqui estamos diante de temas grandiosos e inexplicáveis como a eternidade, a dor, o sofrimento, a passagem da vida. E ainda que este percurso pareça tão lógico e coeso, ele vai incomodar a quem está do outro lado da tela, na ponta oposta chamada vida. O clichê utilizado para representar o espírito humano - um lençol com dois buracos nos olhos - é uma dica para quem se propõe a encarar a produção. Não é na representação física que a morte se apresenta; pelo contrário, os efeitos da perda de um ser amado revelam-se naquilo que não se pode ver ou tocar. Assim, o uso do tempo é a grande estrela deste longa. Enquanto não captamos a ideia que rege a produção, parecemos estar diante apenas de cenas mal cronometradas - tolo engano. Um dos norteadores desta obra é o mostrar a importância dos pequenos momentos e o rápido fluir dos dias, sem cair no discurso de autoajuda. Do conjunto, apenas uma

Vidas Secas (Graciliano Ramos) + filme de 1963

Com uma forte veia memorialista, Graciliano é um daqueles autores que se conhece e se reconhece aos poucos - cada nova leitura proporciona uma inédita abordagem de sua obra. Ainda que esta afirmação seja extremamente genérica, não deixa de ser válida (ao menos nas minhas próprias experiências de retomada dos romances do alagoano). "Vidas secas", narrado em terceira pessoa, é uma exceção no conjunto da obra do autor, voltada para elementos da própria biografia. No entanto, após conhecer "Memórias do Cárcere", identifiquei algumas das experiências de Ramos metamorfoseadas nas vivências da família de Fabiano. Como não associar, por exemplo, a fragilidade do protagonista frente ao soldado amarelo com a prisão injustificada do autor durante a ditadura de Getúlio? As camadas de significados do romance são outra boa surpresa que só a releitura pode proporcionar. Mestre dos cortes e da concisão, ao escolher cada vocábulo para compor as vidas secas, Graciliano tece t

Mãe! (filme de 2017)

Ocupando aquela linha tênue entre filmes que são amados por uns, odiados por outros, "Mãe!" é uma aposta alta de Darren Aronofsky. Toda a trama constrói-se em torno de uma alegoria nem sempre clara para o espectador, gerando dois efeitos profundos e opostos: ou a intriga e a motivação de pesquisar mais sobre a linha de raciocínio do diretor, ou a repulsa pela aparente inverossimilhança do narrado. Um dos recursos que Aronofsky usa para criar essa ambiguidade na recepção de sua obra é o passeio por gêneros diversos: entre o terror e o humor, o romântico e o trash , seu longa foge das categorizações fáceis. É uma obra multifacetada, dominando linguagens diferentes e exigindo reações diversas daqueles que a assistem. Em minha busca por análises de "Mãe!", encontrei uma definição justa para este trabalho do diretor: Darren é megalomaníaco e moralista. Se pouco tenho contra o primeiro adjetivo, o segundo, por sua vez, me deixa bastante incomodada.  A temática do se

O bem-amado (Dias Gomes) + filme de 2010

Canonizado no imaginário brasileiro, "O bem-amado" nem sempre foi uma produção global televisiva de muito sucesso - publicado inicialmente em 1962, despertou a censura e o ódio durante o período de ditadura militar. Na sua talvez mais conhecida peça teatral, Dias Gomes faz uma sarcástica interpretação da política brasileira, movida a interesses escusos e demagogias baratas - um texto bastante atual, portanto. Por trabalhar com tipos e piadas rápidas, o tom geral da obra acaba sendo mais o humor - ao contrário de "O pagador de promessas" por exemplo, que beira a tragédia. Ainda que prefira a verve mais dramática do que a cômica, trata-se de uma produção bem realizada. O mesmo não se aplica ao filme homônimo de 2010 dirigido por Guel Arraes. Na tentativa explícita de recriar o sucesso de "O Auto da Compadecida", o diretor se engana profundamente. Sem nem ser fiel ao texto original e nem conseguir reproduzir a comicidade anterior, o longa-metragem é um

A vida secreta dos grandes autores (Robert Schnakenberg)

Todo ilustrado pelo cartunista Allan Sieber e com uma capa que brinca com a ideia dos tabloides de fofocas, em princípio é difícil levar esta obra a sério. No entanto, usei como termômetro da confiabilidade da leitura as informações que já possuía. Sobre Tolstói, por exemplo (sobre quem já li uma biografia de quase 600 páginas), nenhum dado oferecido por essa biografia divertida me pareceu demasiado exagerado ou irreal. Tomando este russo como parâmetro, a obra, ainda que tenha sim o propósito apelativo, não deixa de ser informativa. Para quem gosta de literatura é quase um fan service . Para quem não gosta, é um bom meio de descer os escritores do pedestal e torná-los mais próximos, reais e falhos (se não na escrita, ao menos como humanos).

Jorge de Lima: vida e obra (Povina Cavalcanti)

Já é frase repisada (e com autoria perdida) que a estrada para o inferno está pavimentada com advérbios. Povina Cavalcanti não só segue fielmente este preceito, como reforça todas as veredas de seu caminho com adjetivos bizarros, típicos de um lambe-botas literário e católico carolinha. O livro biográfico vale apenas pelas citações: trechos escritos por Jorge de Lima ou sobre ele. Todo o resto, articulado pelo cunhado do famoso poeta, é absolutamente desprezível, absurdamente mal escrito, um exemplo do que não se deve fazer em crítica literária de qualquer ordem. Redações de alunos semialfabetizados são mais bem construídas.

Dangal (filme de 2016)

Os fãs de filmes indianos já se acostumaram à abertura clássica dessas produções: o print  de uma ficha com os dados técnicos da produção (o que talvez seja um retrato da burocracia que, tal como aqui, permeia este país de dimensões continentais). No entanto, Dangal oferece uma grande surpresa, logo no início: o castelinho da Disney anuncia que essa produção é de Bolly e de Hollywood - um misto até então raro. O que veio do Ocidente para o Oriente de positivo? A película recente de Aamir Khan revela uma nova temática, centrada na força e no poder feminino. Em um país machista como a Índia (uma das campeãs de estupro do mundo), esse tipo de mentalidade - ainda que importada - é sempre bem-vinda. As produções de Bollywood atingem milhões - que seja, então, para divulgar respeito. Por outro lado, a influência ocidental nesta peça indiana acabou confluindo para pasteurizar um pouco mais o seu formato, seu enredo, seu estilo. Trata-se de um filme mais curto que o usual, com menor mescla

Adeus, Europa (filme de 2016)

Para quem nada conhece da obra ou da vida de Stefan Zweig (caso no qual provavelmente me incluo, dado que apenas comecei a ler a "Autobiografia: o mundo de ontem"), o filme sobre a vida do escritor austríaco talvez não seja nada mais do que um longa interessante. Não se trata de uma produção intrincada, fragmentária ou que pressuponha conhecimentos específicos de seu espectador; ainda assim, não tem o objetivo de ser didática. Dividida em algumas cenas, nos leva a acompanhar a vida do escritor, refugiado do nazismo, no Brasil - até seu suicídio, em 1942. O panorama que se constrói é o de um mundo em derrocada, no qual resta pouca ou nenhuma esperança. Com mais de 60 anos, Zweig não esperou pelo desenrolar dos eventos trágicos da guerra. Talvez sem forças para recomeçar mais uma vez (afinal, ele também sobreviveu ao primeiro grande conflito europeu), o literato optou pela solução talvez mais desesperada, talvez mais racional. É uma obra que prende a atenção e que despert

Literatura Comentada - Dias Gomes

Uma das séries mais didáticas sobre livros e autores, talvez o único grande defeito da coleção Literatura Comentada seja a sequência de spoilers. Ao apresentar um recorte da obra do autor retratado, as análises pecam ao revelar demais do enredo - o que sempre pode comprometer o interesse do leitor. Ainda assim, o volume sobre a produção de Dias Gomes é muito interessante. O texto teórico ao final, ainda que curto, é bastante revelador. Outro ponto que merece destaque é a comparação feita entre os escritos televisivos e os escritos teatrais de Gomes, criando um bom contraponto entre esses dois universos.

Memórias do Cárcere (Graciliano Ramos) + filme de 1984

A ditadura de Vargas não costuma suscitar tantas críticas quanto os governos pós-1964; atenuado por epítetos como "o pai dos pobres", esse período histórico brasileiro não é o principal alvo de críticas ferrenhas. Talvez o mais forte exemplo de libelo contra essa tentativa de fascismo brasileiro seja o romance "Olga" de Fernando Morais, posteriormente adaptado para o cinema. Em "Memórias do Cárcere" temos, talvez, o mais potente documento contra o varguismo. Graciliano Ramos, então escritor quase iniciante, foi preso sem passar por julgamento. Encarcerado por mais de um ano, foi transferido para prisões em diferentes locais e de distintos tipos, chegando a compartilhar a cela com ladrões, assassinos e bandidos de todos os feitios. Conhecido por seu cuidado constante com a escrita e sua insatisfação com o resultado final do trabalho, é difícil ponderar o que Graciliano pensaria da publicação deste seu livro inacabado. Última obra de sua vida, as memória

O pagador de promessas (Dias Gomes)

O teatro de Dias Gomes, muitas vezes, lida com personagens arquetípicos na construção do drama. Se, por um lado, esse recurso pode ser tachado de simplista, por outro é inegável que ele dá dinâmica e fluidez à narrativa. Com personagens que são fáceis de entender, cujas motivações são óbvias para o leitor/espectador, toda a surpresa fica por conta do desenrolar dos fatos - arte na qual Dias Gomes, novelista de mão cheia, é versado. O protagonista de "O Pagador de Promessas", Zé do Burro, causa comoção quase imediata do público por sua inocência pueril. No entanto, nas falas de um homem sem estudos e sem muita malícia, o autor da peça vai inserindo fortes questionamentos à Igreja e à autoridade. Não é à toa que sua exibição foi censurada durante boa parte da Ditadura Militar. Livro para pegar gosto pela coisa, é uma excelente indicação para superar os traumas de quem não gosta de ler. E para quem gosta, é um prato cheio.

Harry Potter and the Cursed Child (J.K. Rowling, John Tiffany & Jack Thorne)

Roteirizado como uma peça de teatro, o oitavo Harry Potter talvez seja mais uma história sobre o mundo mágico criado por J.K. Rowling do que sobre o seu protagonista. Ainda que quase todos os personagens mais marcantes da saga apareçam, de uma forma ou outra, a verdade é que este enredo se passa em um outro momento, com diferentes expectativas e desafios. O fato de ter sido dramatizado talvez ajude na linearidade do roteiro - afinal, o teatro não permite descrições muito detalhadas, explicações profundas, uma análise da motivação de cada personagem. Por ser tudo muito dinâmico, o leitor é comprado pelo enredo, mesmo que nem sempre ele seja assim tão verossímil. Há falhas na lógica da história, no comportamento de personagens (principalmente naqueles que já eram nossos velhos conhecidos), no encaminhamento da trama. No entanto, a linguagem deliciosa e o reencontro com a saga, quase vinte anos depois, tornam esses defeitos facilmente releváveis. Qualquer tentativa a mais será muit

O diário de Anne Frank - Edição definitiva

Foram poucos os professores, durante a minha vida escolar, que indicaram leituras. Assim, ainda me lembro da minha descoberta do diário de Anne, por meio da fala de uma professora de História, segundo a qual este livro era uma releitura para a vida inteira. Cumprindo seu ditado à risca, depois de duas incursões na obra durante a minha adolescência, decidi retomá-la mais uma vez - quase quinze anos depois. Anne Frank não é o registro mais representativo do que foi o Holocausto (e quem diz isso não sou eu, mas algumas sociedades judaicas de preservação da memória), já que a parte mais cruel e inominável de sua história não foi narrada. Há relatos de crianças nos campos e nos guetos que são extremamente marcados pela violência e pela desilusão. Assim, até essa minha releitura, acreditava que o furor em torno do diário de Anne estava centrado exclusivamente em nossa vontade de querer conhecer o que foi o nazismo apenas até alguns limites. Não queremos nos aprofundar demais, talvez por me