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Mostrando postagens de novembro, 2017

Vozes de Tchernóbil (Svetlana Aleksiévitch)

Os estudos da história cotidiana são recentes (datam dos anos 1960), mas seu campo de atuação vem se ampliando cada vez mais. Ainda assim, quando algum fenômeno abala o mundo, não são os relatos da vida privada que vemos ocupar o centro das informações. Até hoje, por mais avanços e questionamentos existam na historiografia recente, os donos do poder são os donos da história. O livro de Svetlana Aleksiévitch me tocou profundamente. Ao estudar o acidente de Tchernóbil sob a voz da história oficial, ele me parecia apenas mais uma página de um livro didático qualquer - sem uma relevância comparável à de Hiroshima, por exemplo. Ao ser contraposta ao discurso de pessoas que viveram a catástrofe, tive um vislumbre de uma realidade trágica, assustadora e com consequências que reverberarão durante séculos. Tchernóbil não foi um acidente devidamente controlado a tempo. A usina foi um erro desde o começo - feita de modo acelerado durante a Guerra Fria, seu colapso era uma questão de tempo...

The Music of Strangers [filme de 2015]

Um documentário sobre música pode parecer, à primeira vista, pouco interessante para quem é leigo no tema - ainda mais quando retrata um grupo musical muito específico e peculiar, como é o caso do Silk Road Ensemble. Contudo, este filme vai muito além dessa aparência inicial e é largamente indicado (o único pré-requisito para assisti-lo com prazer é ser humano e, portanto, amar a arte). Muito vinculada ao seu tempo,  essa obra é um ótimo retrato da globalização. O Silk Road compõe-se de músicos de diversos países do mundo, cada um com seu instrumento, sua técnica, sua inseparável cultura. Assim, mais do que misturas inusitadas (como uma gaita-de-fole com um violoncelo), o que se vê em cena é um grande e harmonioso diálogo entre os diferentes. Há uma construção linear, que revela como se deu a formação do conjunto, acompanhada de recortes temporais e temáticos para construir a identidade de alguns de seus principais músicos. Seus integrantes são retratados com bastante profundida

Queria ter ficado mais (Várias autoras)

A edição da Lote 42 é tão caprichada que dá medo, à primeira vista, de ser forma sem conteúdo - afinal, a maioria das autoras (se não todas) é desconhecida do público. No entanto, muito caprichada em cada detalhe, a obra é uma delícia para os apaixonados por viagens. São 12 relatos, todos escritos por mulheres, de viagens marcantes em suas vidas. Cada memória vem embrulhada em um envelope ilustrado como se fosse um cartão-postal, como uma carta que veio de longe para encontrar o leitor. Cada viajante é um jeito de conhecer o mundo - assim, nem todas as formas de roteiro agradam igualmente. Para mim, os relatos que mais deixaram a desejar são aqueles de viagens movidas a cachaça; por outro lado, o número de histórias tocantes é muito maior. Há quem levou os pais para a primeira viagem ao exterior, quem acompanhou um desconhecido pelas ruas da China para ver uma pesca, quem fez um amigo em um museu e que retorna sempre a ele para botar o papo em dia. São várias histórias, aventuras,

Múltipla Escolha (Alejandro Zambra)

Zambra é um autor chileno contemporâneo de que gosto muito - em partes. No geral, toda sua obra me soa um tanto irregular: há começos que são inesquecíveis (como o incrível início de "Bonsai"), passagens marcantes (como a discussão com um pai pinochetista em "Formas de voltar para casa") e finais enigmáticos (vide "A vida privada das árvores"). No entanto, entre tantos excertos profundos, nem sempre o autor parece manter o mesmo fôlego ou qualidade - ainda que seja o criador de poucos e curtos livros. Assim, "Múltipla escolha" é uma obra que, pela forma, já trouxe todos os elementos para virar o meu Zambra favorito. Como dito no título, este é um projeto literário desenvolvido na forma de testes de vestibular - diante de várias alternativas, posso escolher o meu rumo da história, o meu narrador preferido dentre as ideias múltiplas do escritor. Novamente, não são todos os textos que são igualmente potentes - mas, em um gênero fragmentário como

Novos Poemas + Poemas Escolhidos (Jorge de Lima)

Jorge de Lima é um autor por desvendar - não somente por mim, mas por toda uma fortuna de crítica literária que, ainda que reconheça constantemente sua importância, raramente dá explicações mais profundas (ou acessíveis) sobre o seu fazer poético. Considerado pela academia como um poeta hermético, Lima é um versador de muitas faces. Em seus poemas de temática mais social, consegue atingir o grande público com uma clareza de linguagem notável. Assim, entre multifacetado e enigmático, é um escritor múltiplo. Os "Novos Poemas" e os "Poemas Escolhidos" revelam a faceta modernista do poeta. São versos muito preocupados com o elemento social, com a luta de classes, com a valorização do povo negro. No entanto, publicados por um médico de classe média branco, são carregados de uma visão mais filantrópica do que empática. Há um certo tom "caridoso" em alguns poemas, que pregam o respeito ao povo negro em função da sua importância para a história do paí

Ocho apellidos vascos (filme de 2014) + Ocho apellidos catalanes (filme de 2015)

Recentemente, com a controversa independência da Catalunha, a complexidade do território de fala castelhana voltou a ser pauta na mídia - de maneira quase sempre superficial e grosseira. Nesse contexto de total desinformação, mesmo a produção mais despretensiosa - como é o caso das duas comédias comentadas aqui - pode servir como uma fonte a mais de conhecimento sobre um tema historicamente intrincado. O primeiro longa da sequência, "Ocho apellidos vascos", recorre ao mote clássico romeu-e-julieta: um casal surge entre inimigos, com ela vasca e ele, andaluz. Um das graças de ambos os filmes é ver os personagens tentando fingir que são de origens distintas, como o espanhol que incorpora algumas palavras da língua euskera à sua fala. Nessa jogada cômica, vemos, por um lado, os estereótipos de cada nação dentro da Espanha; de outro, percebemos o quão complexa é a identidade de cada um desses povos, que soa patética quando forjada por alguém de outra cultura. Por serem comédias

O quinze (Rachel de Queiroz)

Publicado quando a autora tinha apenas 20 anos, "O Quinze" foi um dos primeiros retratos das vidas secas brasileiras, um marco no início da segunda fase do nosso Modernismo. As críticas da época (que até hoje se reproduzem nas constantes reedições da obra) enfatizavam a falta de sensibilidade da escritora - afinal, como uma mulher poderia ser tão durona? Assim como o romance de Graciliano, já tão exaustivamente estudado, esta narrativa de estreia de Rachel é tão seca quanto o ambiente que retrata: pouco mais de 100 páginas e uma linguagem bastante direta, sem perder-se em adjetivações excessivas. Por meio do enxuto, a escritora dá voz a personagens mirrados, esmagados pelo tempo inclemente do Nordeste. A grande seca de 1915 é protagonista na trama e traz consigo morte, desolação, canibalismo e a impossibilidade de todo e qualquer amor. A jovem autora dos anos 30 não fala de amor romântico, mas repensa o afeto pelas mulheres: algumas leves indicações de um incipiente femin

Minha vida de menina (Helena Morley) + filme de 2003

Ainda que o contexto seja diametralmente oposto, o diário de Helena Morley, menina de Diamantina do fim do século XIX, em muitos pontos se assemelha ao clássico diário de Anne Frank. Além da obviedade do gênero, ambas as narradoras são surpreendentemente maduras para a idade, criando textos fluidos, irônicos, confessionais e apaixonantes. Talvez as coincidências parem por aí, uma vez que Anne teve pouca chance de editar seus escritos e Helena Morley (provavelmente)  tenha passado décadas nesse trabalho. Única publicação da vida da autora, seu relato não é só um precioso documento histórico, mas também uma trama bem construída e absolutamente envolvente. Ainda que o conceito de feminismo aqui seja bastante anacrônico, o fato é que a menina Helena tem um pensamento bastante avançado para a época. Além das habituais travessuras, ela não tem papas na língua para questionar instituições consagradas como a igreja e o machismo. Fruto de seu momento histórico, o diário, contudo, tem de s

Um operário em férias (Cristovão Tezza)

Com uma quantidade já significativa de livros de Tezza acumulada na minha estante (além das avaliações positivas que já escutei sobre ele), resolvi desbravar o autor iniciando por um livro de crônicas - o que quase sempre é uma sábia escolha. Já de início, o autor adverte o seu leitor da sua dificuldade para transformar o romancista em um contador de causos - alguém que relata a vida cotidiana e dela consegue extrair matéria de reflexão. Ainda que o escritor admita esse problema, ele quase não é sentido pelo leitor (felizmente). Em suas crônicas, Tezza discorre sobre as paixões comuns de todos os aficionados por livros: o prazer pela escrita, a relação com as livrarias, o acúmulo de leituras, as reflexões em torno à linguagem. Seu tom é tão familiar, como uma conversa amiga, que até as crônicas sobre futebol me pareceram interessantes. O maior porém da seleção de crônicas para esta edição talvez sejam as relacionadas à política - por serem muito datadas, nem sempre oferecem inter

Terra Sonâmbula (Mia Couto)

Publicado no ano do fim da guerra civil em Moçambique, "Terra Sonâmbula" é um romance que tem como cenário a desolação, os conflitos, as fugas e um permanente medo do porvir. Não por acaso, dois dos protagonistas da obra representam as duas pontas da vida: o velho Tuahir e o menino Muidinga. O passado marcado por tristezas do país caminhava ao lado de um futuro incerto, com poucas esperanças nas quais se fiar. Esta não é, contudo, a única alegoria da narrativa; aproveitando-se do tom de ensinamento dos velhos griôs, Mia Couto vai tecendo suas parábolas em um universo ora dominado pelo realismo mágico, ora por uma realidade trágica, isenta de magias possíveis. O elemento enigmático de algumas histórias e profecias ajuda a construir a ideia do sagrado na trama e a instigar a curiosidade do leitor - afinal, nem toda palavra quer ter seus significados revelados... Ainda que haja farta presença de mistérios no enredo, ele não chega a tornar-se hermético. Mesmo que algumas aleg

Mayombe (Pepetela)

Como minha primeira experiência de leitura de Pepetela, "Mayombe" foi uma estreia interessante. A linguagem do autor difere muito da de seus pares (no contexto da descolonização africana), como Agualusa ou Mia Couto: é um escritor mais direto, menos metafórico, intrinsecamente ligado aos fatos e à realidade que o cerca. Esta opção linguística justifica-se também pelo contexto: publicado apenas 5 anos após a independência, o romance retrata as divergências políticas que levariam a uma guerra civil sangrenta e duradoura (que se prolonga até hoje na região retratada, a província de Cabinda). O livro usa de recursos narrativos sabiamente escolhidos, que o levam muito além de um registro histórico factual. Uma das opções de Pepetela para mostrar o conflito entre os diferentes participantes do MPLA é a polifonia, com personagens diversos alternando-se na função de narrador. Ademais, em alguns momentos a obra envereda pelo caminho do romance de tese, com discussões profundas s

Capitão Feio (Magno e Marcelo Costa)

Mais uma produção da nostálgica e inovadora Graphic MSP, desta vez com foco no personagem do Capitão Feio. Não está dentre os meus volumes preferidos, mas conta com alguns pontos significativos: - Enredo que prende a atenção do leitor, com um toque de aventura; - Personagem principal foge do maniqueísmo (é mais que um simplório vilão); - Referência bastante velada à desigualdade de renda (mas, só por existir, já atribui outro significado à história); - Diálogo com diversos gêneros (telejornal, história em quadrinhos, aventura); - Easter eggs simpáticos.

Macanudo 12 (Liniers)

Com um projeto gráfico bem trabalhado (contando inclusive com capas de diferentes cores), este volume das tirinhas macanudas parece focar um pouquinho mais o personagem Picasso do que os demais. Há, inclusive, um diálogo com a pintura cubista nas capas e ao longo do miolo.  É um bom conjunto de tirinhas, ainda que não esteja dentre os meus favoritos. Há boas piadas e alegorias, mas talvez não seja o volume mais profundo dentre os vários já produzidos pelo argentino.

It (filme de 2017)

Fui uma leitora voraz de Stephen King durante a minha adolescência - e, se houve algo que me fez perder a vontade de terminar a sua obra completa, foi a qualidade duvidosa de seus livros mais longos. "It" situa-se nesta linha, ainda que seja uma narrativa que eu tenha levado até o fim. Dividido em duas partes, o mérito deste filme homônimo é aproveitar o que há de mais interessante na escrita de King, sem prender-se demais ao enredo original. Talvez a versão cinematográfica faça o que os editores do escritor parecem evitar: cortes, supressões, a redução ao mínimo essencial para contar uma boa história de horror. Ambientado nos anos 80 (ao invés de nos anos 40, como no romance), o longa explora a recente nostalgia da década dos nerds . Com protagonistas pré-adolescentes, a obra mistura um pouco da inocência infantil com a malícia dos mais jovens, o que a torna uma delícia de ser vista (ainda que seu tema seja o horror). Um ponto bastante interessante é o retrato dos adul

Blade Runner (filme de 1982)

Considerado um dos maiores clássicos da filmografia de ficção científica, "Blade Runner" tem sim seus méritos - e, além deles, o fato de ter servido de inspiração a uma série de produções torna as suas cenas bastante reconhecíveis (como se já fizessem parte de um imaginário popular comum). Dentre os pontos que se destacam no longa, estão: - A atuação enigmática de Harrison Ford (com um "quê" das expressões faciais de Marlon Brando); - A ambiguidade primordial do enredo (em um mundo de androides extremamente verossímeis, como ter certeza sobre quem é humano?); - A fuga do maniqueísmo (não há heróis verdadeiros pelos quais se torcer); - A carinha (hoje nostálgica) de um bom filme dos anos 80.

O físico (filme de 2013)

Se o conceito de uma "Idade Média" já foi bastante questionado no campo acadêmico, isso pouco parece se refletir no imaginário que temos sobre o período. Muito da nossa ignorância em relação a esse momento histórico, contudo, está provavelmente atrelada ao nosso profundo desconhecimento sobre o Oriente. Inspirado em um livro best-seller , "O físico" não é um filme que revoluciona a estética ou o modo de se contar uma narrativa. Pelo contrário: trata-se de uma obra cheia de clichês, anacronismos e interpretações um tanto forçadas (além de efeitos especiais inverossímeis). No entanto, o fato de um filme padrão conseguir questionar nossa concepção sobre alguns dados históricos não deixa de ser um ótimo sinal. Toda a parte que interessa no longa está relacionada ao amor pela ciência, pela descoberta, e ao avanço de algumas civilizações orientais em vários campos de estudo. Ainda que seja um retrato bastante falho, trata-se de uma boa tentativa e que prende a atenção

Daniel Hope (filme de 2017)

O documentário sobre a vida do solista Daniel Hope tem uma temática muito interessante; afinal, fora do mundo dos entendidos da música, quem conhece os grandes solistas? No entanto, não trata-se em nenhum momento de uma abordagem inacessível para leigos. Este filme é, no geral, um retrato de como é ter toda uma vida regida pela música. A trilha sonora, obviamente, é excelente. No entanto, o grande mérito da produção é não deixar que o trabalho do documentado/protagonista obscurecesse a abordagem do diretor. Há uma narrativa muito precisa nas escolhas de temas, entrevistas e cenas que formam o conjunto do documentário.  Toda a obra caminha no sentido de mostrar a integração entre os diferentes tipos de arte e como cada uma delas é essencial na formação do ser humano. Assim, vemos Daniel Hope ir atrás dos direitos de posse de um jazigo de família, encabeçado por uma bela escultura; assistimos à produção de telas em aquarela por sua esposa; acompanhamos o violinista aprendendo suas pr

O abutre (filme de 2014)

O jornalismo sensacionalista é muito mais do que apenas um veículo para a satisfação de nossas curiosidades mais mórbidas; é uma indústria, e, como tal, lida com funcionários, concorrência e uma ética muito própria no trabalho. Este é o foco do filme "O abutre", estrelado por Jake Gyllenhaal: um retrato de como são geradas e popularizadas as notícias sobre crimes, acidentes e tragédias em geral. O grande mérito da obra em sua abordagem é centralizar a narrativa em um personagem que, apesar de causar uma certa simpatia (ou ao menos empatia) no espectador, é um sociopata. Com o foco no anti-heroísmo, passa-se boa parte do filme na torcida pelo protagonista - ainda que seus atos sejam moralmente reprováveis. A ideia de trabalhar duro em algo que se ama (e ser bem pago por isso) parece abafar alguns traços muito mais graves de caráter do personagem principal. Só a profissão adotada por ele (filmar tragédias recém-ocorridas) já dá uma boa pista sobre os gostos e preferênci