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Mostrando postagens de 2018

Dois sonhos (Dostoiévski)

Reunião de dois textos de Dostoiévski que têm por título a ideia do sonho, esta obra apresenta uma novela cômica e um conto de difícil classificação temática. "O sonho do titio", que abre o volume, tem a estrutura similar à de uma comédia de erros. Bastante teatral, conta com situações inusitadas e desfechos inesperados para os problemas que introduz. É uma narrativa que ridiculariza a nobreza russa ocidentalizada, apontando os interesses que regem as relações sociais da época. Já "Sonhos de Petersburgo em verso e prosa" é um texto bastante confuso, cheio de referências datadas que o tornam bem cansativo. Ainda que tenha um começo genial, aos poucos o texto se perde e anula o interesse de quem é leitor do século XXI, tão distante das piadas internas que o autor faz em relação aos figurões de sua época.

Jogador número 1 (filme de 2018)

Ainda que o melhor Steven Spielberg seja o dos anos 1990, "Jogador número 1" consegue recuperar algumas das características mais interessantes do diretor. Com um núcleo de protagonistas adolescentes que precisam resolver mistérios e salvar o mundo, a trama cria uma ambientação interessante (naquele clima de filme da Sessão da Tarde). O ponto alto do filme, são dúvida, são os easter eggs. A proposta de criar pontes intertextuais sela um pacto de fidelidade com o espectador (principalmente com o mais cinéfilo).

Um pequeno herói (Dostoiévski)

Escrito durante o período em que Dostoiévski esteve preso, "Um pequeno herói" é um livro que, surpreendentemente, não tem um ambiente sombrio ou desolador. Ao contrário de obras anteriores do escritor, em que predominava o cenário da pobreza e/ou a melancolia da noite, esta é uma trama solar e burguesa. Assim como em Niétotchka Niezvânova, que o precede, "Um pequeno herói" é uma narrativa que acompanha o desenvolvimento de um protagonista no limiar entre a infância e a adolescência. E, novamente, é a descoberta amorosa que consolida a mudança de fase da personagem dostoievskiana. Não é de se estranhar que dois trabalhos seguidos do escritor tenham como figura central um adolescente - afinal, essa é uma fase rica para a psicanálise, em que conflitos pessoais, dramas e tabus se aprofundam vertiginosamente. Ao escolher uma época tão complexa da vida como foco de sua narrativa, o autor pode trabalhar com diversos temas em uma curta narrativa - a iniciação amorosa, o

Beasts of Burden: rituais animais (Evan Dorkin e Benjamin Dewey)

Com um clima que lembra o de "Stranger Things" e "Goonies", esta é uma história de jovens aventureiros que precisam resolver situações-limite envolvendo seres mágicos e conspirações de todo tipo, sem contar com o auxílio dos adultos. Ou, aliás, dos humanos - afinal, nossos protagonistas são uma bela equipe de cachorros. O traço da HQ é lindo, e reproduz fielmente alguns dos trejeitos dos bichinhos. Assim, quem tem companheiros de 4 patas tende a se identificar facilmente com a história. Ainda que a sequência de conflito-aventura-resolução do mistério me canse um pouco, as piadas ao longo da narrativa são muito bem pensadas. Dessa forma, até mesmo leitores mais afastados do gênero de suspense e mistério se sentem cativados pela trama.

A mão e a luva (Machado de Assis)

Segundo romance de Machado de Assis, a edição de "A mão e a luva" conta com um prefácio que serve à guisa de mea-culpa: "Esta novela, sujeita às urgências da publicação diária, saiu das mãos do autor capítulo a capítulo, sendo natural que a narração e o estilo padecessem com esse método de composição, um pouco fora dos hábitos do autor". Publicada em folhetim, a obra ainda tem um viés bastante romântico. Ainda que a ironia de Machado já comece a se desenhar aqui, o enredo acompanha basicamente a consolidação de uma história de amor. Entretanto, o autor sabe fugir da previsibilidade do romance romântico, unindo um casal que foge às expectativas do leitor. Como também afirma Machado em prefácio, a obra se desenha em torno do caráter da personagem Guiomar. É para atender aos seus caprichos e vontades que outras figuras são compostas ao longo do enredo. Portanto, mesmo com desfecho romântico, é um livro que já começa a questionar as possibilidades de se narrar uma h

O deserto dos tártaros (Dino Buzzati)

"O deserto dos tártaros" é uma obra sobre a vida que poderia ter sido e não foi. Espécie de romance de formação, ainda que acompanhemos seu protagonista apenas na fase adulta, o livro trata das expectativas continuamente frustradas pela maturidade. Não há, contudo, ironia ou amargura nesse relato - o que predomina é o tom de uma melancolia resignada, de uma esperança inútil. O tenente Drogo, personagem em torno da qual se constrói o enredo, é convocado para servir em um forte na região fronteiriça da Itália. O cenário de montanhas contornadas por um deserto diz muito sobre os altos sonhos de Drogo, que terminam ao rés-do-chão. Anos se passam enquanto o protagonista, vivenciando um cotidiano burocrático e sem sentido, espera por uma guerra, o grande momento no qual irá brilhar. A inocência de Drogo somada ao desfecho brutal da obra me lembrou muito o nosso "A hora da estrela", de Clarice. A grande diferença entre Drogo e Macabéa é o peso do tempo, que faz o prota

Sorry to Bother You (filme de 2018)

2018 foi o ano do genial videoclipe "This is America", do multifacetado artista Childish Gambino, que provocou polêmica ao expor cruamente o funcionamento da máquina do preconceito racial nos Estados Unidos. Coincidentemente ou não, "Sorry to Bother You" nasceu como álbum musical antes de ser transposto, com muitas ironias e intertextualidades, à tela do cinema. Assim como o diretor Boots Riley, artista que atua em várias áreas, o longa conversa com diversas linguagens e gêneros. Sabe aquela vontade de ir pausando o vídeo de Gambino para tentar entender todos os seus subentendidos? Ela se replica aqui, em uma obra que é igualmente poderosa no embate ao preconceito. Há uma dose de sarcasmo tão potente que extrapola o verossímil. No entanto, é na sua imersão no irreal e no grotesco que o filme consegue revelar o absurdo da distinção que se faz pela cor da pele. Para quem se interessa pela proposta, é absolutamente imperdível.

A promessa/A pane (Friedrich Dürrenmatt)

Friedrich Dürrenmatt é um autor suíço, ou seja, de um país literariamente híbrido, com 4 idiomas oficiais (francês, italiano, alemão e romanche). Um dos expoentes da literatura contemporânea na dita nação das neutralidades, o escritor usa o desenvolvimento e a estabilidade de sua terra natal como motivo de crítica e escárnio -- um panorama bastante diverso do que encontramos na literatura que nos é mais próxima. Ao ir na contracorrente do que poderíamos esperar enquanto leitores, Dürrenmatt cria uma prosa marcante, que questiona padrões já cristalizados no gênero. Sua novela "A promessa", como exemplo, é uma instigante narrativa policial, absolutamente envolvente, e que termina com um anticlímax. É duvidando da potencialidade do romance de mistério que o suíço consegue criar um plágio sarcástico muito mais interessante do que boa parte da produção que se detém nos esquemas consagrados. Já em "A pane", o mistério crescente finalizado com anticlímax se mantém, mas

Livros (Murray McCain e John Alcorn)

Com uma linguagem bastante afetiva em relação ao ato de ler, a pequena obra também é ricamente ilustrada, servindo como um ótimo gatilho para incentivar o interesse das crianças pelo universo da leitura.

Poemas 1913-1956 (Bertold Brecht)

Embarquei na leitura de Brecht com o espírito de uma quase vingança pelos resultados catastróficos das eleições de 2018. No entanto, o percurso que começou pelo ódio terminou com muito amor: com similaridades profundas entre os tempos que correm e meados do século XX, pude encontrar, no poeta, algum conforto e muita compreensão. As brigas com familiares pela intolerância política; a exaltação da anti-intelectualidade; a ascensão dos fascismos ao poder; a sociedade regida por um discurso hipócrita e profundamente violento - tudo isso é Brasil 2018 e também Alemanha dos anos 1940. O tempo, que agora já se repete como uma farsa, reproduz velhos e tristes esquemas. Se a reflexão de Brecht sobre a barbárie não traz alívio, ao menos ela dialoga com nossas incertezas mais atuais e profundas. Na voz desse poeta de quase 1 século atrás, encontrei uma possibilidade de encontro maior do que a que tenho no presente. Talvez o mérito seja do autor, atemporal; talvez o demérito seja nosso, seres

Rua Aribau (organização de Alice Sant'anna)

Antologia organizada pela Tag Experiências Literárias para acompanhar o livro "Nada", da escritora espanhola Carmen Laforet, a "Rua Aribau" remete ao cenário deste importante romance. Seus poemas giram em torno das mesmas temáticas abordadas pela obra - a solidão, a viagem, a adaptação, dentre outras. Como qualquer coletânea, irregular, ainda assim a obra conta com poemas muito interessantes e que dão uma boa mostra da produção poética feminina brasileira. 

Eletrocardiodrama (Germana Zanettini)

Poeta que conheci por viralizações literárias do Facebook, Germana Zanettini é uma escritora de produção ainda curta, mas já bastante significativa. Com apenas 1 livro individual publicado até o momento, já ganhou prêmios importantes de literatura e teve seus poemas divulgados em ônibus, agendas, posts replicados ad infinitum.  Com uma verve poética simples - mas não simplista - seu estilo tem traços da poética de um Leminski, de um Mario Quintana. No entanto, ainda que seja possível criar tais espelhamentos, não é possível reduzir a obra às suas prováveis influências.  Um dos traços mais interessantes no livro de estreia da jovem autora gaúcha é seu diálogo forte com a contemporaneidade, mas sem cair em experimentalismos forçados. A linguagem é moderna e fluida na medida suficiente para ser facilmente compreendida - mesmo quando os poemas,em sua maioria curtos, são constituídos de várias camadas de significado.

Eu falo dos que não falam (Hans Magnus Enzensberger)

Lido por acaso, durante a faculdade, este livro de poesias foi um dos meus preferidos durante a época. Antologia de um poeta quase não traduzido para o português, a obra ainda tem o inconveniente de ser uma edição do antigo Círculo do Livro - ou seja, quase impossível de encontrar por menos de 3 dígitos em sebos. Presente no catálogo de 2019 da editora Todavia, Enzensberger é um autor que deve mesmo ser resgatado nos tempos atuais. Ainda que só tenha um vislumbre de sua obra, foi o suficiente para criar uma ideia da contemporaneidade da produção. O autor viveu tanto a Segunda Guerra Mundial quanto a separação das Alemanhas, o que marca uma visão extremamente amargurada e sem esperanças sobre o decorrer da história. Não há suavidade em seus poemas, feitos para causar choque e ironizar a sociedade da qual, sem escape possível, faz parte. Defesa do lobo contra os cordeiros Querem que o abutre coma miosótis? o que exigem do chacal? do lobo, que mude de pele? Querem que ele mesmo

Antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira (organização de Adriana Calcanhotto)

Grande leitora de poesia, Adriana Calcanhotto soube organizar uma antologia muito interessante da produção contemporânea. Ao declarar, já no prefácio, que o trabalho de criar uma coletânea é sempre pautado por preferências pessoais, a cantora não se propõe a oferecer nada mais que um conjunto de poemas de que gosta - e, por meio dessa modéstia, consegue dar corpo a uma reunião muito consistente de textos. A sequência dos poemas é pensada de forma a dar unidade à obra; no entanto, como nos garante a organizadora, também é possível ler os textos sem ordem nenhuma - testando, assim, a liberdade inerente ao texto poético. Por meio da incompletude oferecida neste livro, pude ter o contato inicial com vários poetas interessantes, que ainda estavam ausentes das minhas listas usuais de leitura. Resta, agora, completar as lacunas deixadas pela antologia.

Black Bazaar (Alain Mabanckou)

Autor convidado para a Festa Literária Internacional de Paraty em 2018, Alain Mabanckou foi anunciado como uma das vozes africanas mais interessantes dos últimos tempos. No entanto, ao entrar em contato com a sua obra (e mesmo assistindo à sua fala durante a Flip), não tive surpresas positivas. Em "Black Bazaar", o uso da linguagem coloquial serve como desculpa para inconsistências linguísticas - como o excesso de frases machistas e insinuações bregas ao sexo -; a história da África, como pretexto para um revisionismo fraco e a mando do colonizador; o enredo, como meio de preencher páginas e páginas com falatório incoerente. Por ter um  protagonista escritor, uma ou duas passagens da obra são interessantes do ponto de vista metalinguístico; de resto, perdi o interesse pela produção e pela figura de Mabanckou, que parece mais preocupado com o uso de roupas de grife do que com a qualidade da narração.

Breve antologia da poesia engraçada (organização de Gregório Duvivier)

Realmente breve, mas nem tão engraçada assim - a antologia de poesia cômica organizada pelo (também) humorista Gregório Duvivier pode despertar polêmica em relação à existência ou não de humor nos poemas. Ao contrário de antologias maiores, nas quais sabemos de antemão que teremos preferência por alguns textos, o formato enxuto da obra organizada por Duvivier eleva as expectativas em relação a cada um dos poemas presentes. Não se trata de uma má seleção; no entanto, talvez o título da coletânea prometa mais do que o que de fato se cumpre. Dentre os textos que compõem a breve obra, uma boa parte conta com uma verve mais melancólica, por vezes desesperançada. Neste curto compilado, até o riso é breve.

Bohemian Rhapsody (filme de 2018)

Visto como um ícone do rock britânico, dificilmente Freddie Mercury é associado às suas origens multiétnicas: nascido na Tanzânia e filho de pais indianos, o cantor é fruto de um mundo já globalizado e de fronteiras líquidas. A escolha de Rami Malek (ator de origem egípcia) reforça esse aspecto tão essencial da vida do cantor. Entre o masculino e o feminino, o barítono e o tenor, o oriental e o ocidental, o vocalista do Queen é a prova do quanto a soma dos diferentes pode ser positiva. Mesmo que este não seja o foco da produção, a opção do longa de não abrir mão das ambiguidades fundamentais de Mercury contribui para um retrato mais apurado do seu biografado. Em um filme que procura recriar o percurso de uma vida, o trabalho do ator principal é fundamental. Assim o demonstra Rami Malek, que faz interpretações musicais surpreendentes, trazendo à vida com primazia a voz, os trejeitos e as maravilhas de Freddie Mercury.

Dictadoras (Rosa Montero)

Rosa Montero é uma prolífica escritora espanhola, que se aventurou por diferentes gêneros ao longo da carreira. Em "Dictadoras", a incursão em outras possibilidades vai ainda além do usual: a obra é uma reunião de textos que são fruto de um programa televisivo apresentado pela escritora.  A ideia da série/livro é investigar a vida das mulheres fundamentais na biografia de alguns dos maiores tiranos da história: Hitler, Mussolini, Franco e Stalin. Ainda que seja extremamente panorâmica, sem aprofundar-se nos personagens retratados, a obra é bastante curiosa e traz muitos elementos de interesse para o leitor. Para os gregos antigos, o homem político deveria ser escolhido dentre os cidadãos exemplares. Ainda que o conceito seja bastante problematizado hoje, é instigante notar que, de fato, os déspotas analisados foram igualmente execráveis na vida particular. Talvez a exceção seja Franco - casado com uma mulher ainda mais cruel do que ele próprio. Boa opção de leitura para q

O primeiro homem (filme de 2018)

Filmes hollywoodianos sobre a dita conquista do espaço costumam contar com clichês conhecidíssimos pelo espectador: as cenas gloriosas com música ao fundo; os momentos de apreensão dos trabalhadores da Nasa seguidos por efusões cheias de palmas e abraços; efeitos especiais dignos de videogame. Por não recorrer a quase nenhum desses recursos ululantes, "O primeiro homem" se destaca como um dos melhores filmes sobre a temática da viagem pelo universo. Dirigido por Damien Chazelle (que também conduziu o quase ganhador do Oscar - La La Land), o longa tem um clima melancólico, bem longe do patriotismo usual estadunidense. Além de acompanhar a vida de Neil Armstrong desde sua entrada na Nasa e revelar o quão longo foi seu percurso pessoal até estar pronto a dar o primeiro passo na Lua, a obra também revela dramas pessoais do astronauta, humanizando-o perante o espectador. O grande trunfo de "O primeiro homem", é, portanto, contar a história de um homem - e não de um h

As últimas testemunhas (Svetlana Aleksiévitch)

Meu livro de entrada na obra da autora bielorrusa Svetlana Aleksiévitch foi "Vozes de Tchernóbil", que coleta testemunhos sobre uma das grandes catástrofes da humanidade - sobre a qual, até então, eu não sabia quase nada. Perceber a dimensão do acidente nuclear (que foi mais uma consequência fatal do que um imprevisto) foi particularmente revelador para mim, e aumentou demais o meu interesse pela produção da autora. Em "As últimas testemunhas", que conta a história de crianças que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, inicialmente meu choque não foi tão intenso. Por já saber de antemão o contexto de crueldades do conflito, pude ir mais preparada para a leitura - ainda que, com a repetição de histórias trágicas, tenha ficado mais sensibilizada conforme o decorrer da obra. O trabalho de Svetlana é profundamente humano, e revela sua autora por meio dos recortes que faz dos testemunhos que coleta. Assim, profundamente polifônica, sua obra é um meio de conhecer as v

O livreiro de Cabul (Asne Seierstad)

"O livreiro de Cabul" é um livro-reportagem bastante marcante, que trouxe à tona várias polêmicas relativas à sua elaboração. A obra é narrada do ponto de vista da jornalista norueguesa Asne Seierstad, que foi gentilmente acolhida na casa de um mercador de livros afegão pouco tempo após o atentado às Torres Gêmeas e ao consequente colapso do regime talibã. Imersa na cultura que a acolheu (convivendo na casa dos anfitriões, usando burca, participando das confraternizações), a jornalista pode acompanhar uma família inusual, mas, ainda assim, reflexo das tradições afegãs. Por ter sido recebida por pessoas que falavam correntemente inglês, Asne teve um vislumbre interessante das tensões que regem os núcleos familiares fundamentados no Islã e no patriarcado. Ainda que tenha usado nomes fictícios, a escritora recebeu duras críticas por seu retrato fiel do livreiro de Cabul - afinal, foi tão fácil reconhecê-lo que ele teve de se exilar com a família no Canadá para evitar persegu

School Circles: Every Voice Matters (filme de 2018)

O que é uma escola inovadora? Sem prender-se a nomes ou a definições metodológicas, o documentário School Circles visita algumas escolas da Holanda que optam por um ensino menos formal e mais colaborativo. Assim, podemos visualizar experiências de escola que diferem muito da usual carteira-lousa e refletir sobre seus acertos e eventuais carências. Entre as várias propostas interessantes oferecidas ao espectador, a que me chamou mais a atenção é a que se baseia na sociocracia. Por meio dela, as escolas se organizam não apenas levando em consideração a opinião da maioria (tal como funciona na democracia), mas sim a capacidade de adaptação e argumentação de todos. Novo para mim, o conceito me pareceu um ótimo modelo para repensarmos as falhas do nosso sistema democrático - que se refletem também na escola. A última frase do filme - "É o nosso direito" - deixa em evidência o que registros como esse procuram causar: a perspectiva de que uma educação diferente e libertadora não

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola (Maya Angelou)

O que Maya Angelou conta não tem nome. Sua resistência, luta, superação, coragem vão muito além do que esperamos em nossa ilha de conforto e conformismo branco. Assim, só ela pode ter plena consciência sobre o porquê de narrar a própria história; só ela sabe por que o pássaro canta na gaiola. A autora, além das inúmeras outras profissões e cargos que exerceu ao longo da vida, se aventurou principalmente em dois campos literários: a poesia e a biografia. Esta obra, seu primeiro relato de memórias, é absurdamente impactante e passa longe dos erros que poderiam ser esperados em um livro de estreia. Se a existência de Maya já é o suficiente para gerar o interesse do leitor, ela não basta para a escritora. Não só somos presenteados com uma biografia potente, mas também com um estilo vigoroso, extremamente poético (não é à toa que a autora também se dedicou a esse gênero). Ora tocante, ora de revirar o estômago, é uma literatura que pode causar de tudo - menos indiferença.

Comunicação não violenta (Marshall Rosenberg)

Nos dias que correm, qualquer tipo de comunicação efetiva com o outro é válida - ainda mais se marcada pela aceitação, empatia, não violência. O livro de Marshall Rosenberg não foi particularmente revelador para mim, mas confesso que, enquanto o lia, pensava no quanto ele poderia ser de boa ajuda àqueles que precisam redescobrir sua humanidade. Há sim problemas, e vários. A obra é excessivamente autoelogiativa, e não se preocupa em apresentar as falhas e erros do método. Assim, sem uma visão crítica sobre o processo que propõe, o texto acaba ficando um tanto frágil.  No entanto, o simples fato de propor uma reflexão sobre a linguagem já pode levar a bons insights. Afinal, criar pontes comunicativas não é um processo natural. Para alcançá-lo, há que se ir além do instinto e da recusa do outro.

A menina do capuz vermelho e outras histórias de dar medo (Angela Carter)

Angela Carter foi uma questionadora escritora britânica,  que soube escrever desde versões empoderadoras dos contos de fada (que irritaram aos conservadores) até uma releitura feminista de Marquês de Sade (que irritou aos progressistas).  Como pesquisadora, Carter também foi polêmica, como o prova a reunião de contos da tradição oral em "A menina do capuz vermelho e outras histórias de dar medo". Desde inuítes até relatos da tradição afro-americana moderna, as narrativas coletadas pela britânica têm o comum o estranhamento, o choque e um universo trágico muito diferente do imaginado pela Disney. Ainda que sejam poucos, os contos do livro são o suficiente para mexer com o leitor. Mais chocantes do que as coletâneas originais de Perrault e dos Irmãos Grimm, essas narrativas contam com elementos inesperados no gênero, como piadas sujas e humor sarcástico, provando que os contos de fada são muito mais sombrios do que aparentam.

Uma noite na praia (Elena Ferrante)

Diante de tantos escândalos nas redes sociais relacionados a livros infantis, é de se imaginar como seria a recepção desta obra de Ferrante por aqueles que acreditam que literatura para crianças deve ser moralizante e extremamente literal, sem espaço para a imaginação. "Uma noite na praia" dialoga com o final da série Napolitana, que tornou a escritora italiana tão conhecida. Além da questão temática, até a linguagem utilizada se assemelha muito ao universo das personagens Lina e Lenu na infância (e talvez seja justamente esse recurso que cause o estranhamento). Em seu livro destinado às crianças, Ferrante diz o que elas querem escutar, sem passar panos quentes na violência que rege o universo infantil (inclusive a sexual). Assim, é uma produção que tem de tudo para agradar e provocar a imaginação dos pequenos - na mesma proporção em que pode irritar os pais por sua sinceridade desenfreada. 

Nuvens (Hilda Machado)

Este curto livro interessa tanto pela produção poética em si quanto pela história que levou até ele. Hilda Machado, pesquisadora de cinema, era uma poeta que não se assumia enquanto tal. Foi graças à contínua insistência de amigos que acabou por ceder um ou dois poemas para publicação em um jornal de pequena circulação - que acabou chegando ao também poeta Ricardo Domeneck. Assim, a obra publicada pela Editora 34 só foi possível pela paixão que 1 poema despertou. No belo prefácio, Domeneck conta o quanto demandou tempo descobrir quem era, de fato, Hilda Machado... e como suas esperanças foram frustradas ao saber que a inédita escritora havia se suicidado. Os poemas recolhidos na obra vieram envoltos pelo luto, símbolos de uma produção rara. Filho único da poeta, "Nuvens" é um presente para o leitor. Tal como Hilst, temos aqui outra Hilda sarcástica, poderosa e extremamente lírica. Ainda que o conjunto de poemas curtos que dá título ao livro não seja tão memorável, seus te

Romances de cordel (Ferreira Gullar)

Ferreira Gullar, como comentarista político, é um ótimo poeta. Basta ver seus textos desprezando a importância da literatura negra ou defendendo a internação forçada de pessoas enfermas mentais para sentir um pouco do "ranço" que, infelizmente, parece ter marcado seus anos finais de vida. No entanto, tal como na música de Belchior, Gullar também foi aquele que acreditou na mudança - ainda que na juventude. O livro "Romances de cordel" reúne textos quase didáticos escritos pelo poeta quando ele fazia parte de movimentos sociais de cunho esquerdista. O objetivo de seus cordéis, então, era explicar a necessidade da reforma agrária ou da distribuição igualitária de renda, por exemplo. Saber dessa outra faceta de Gullar talvez me ajude a perder um pouco da antipatia que sinto pela sua produção. Afinal, há que saber separar eu lírico de eu biográfico - ainda mais quando lidamos com uma vida tão cheia de contrastes e arestas.

A câmara sangrente (Angela Carter)

O fato de ser um dos livros mais mal avaliados do clube da Tag Curadoria me fez iniciar a leitura de Angela Carter com receio. No entanto, se houvesse confiado mais em quem indicou a obra (a incrível Marina Colasanti), saberia desde o início ter em mãos algo maravilhoso - ainda que tão polêmico. Carter faz, em 1979, o que se tornou chavão na nossa cultura atual: o reconto de histórias de encantamento. Para quem não admite releituras de clássicos, é natural que o livro cause choque - ainda que, convenhamos, as histórias originais sejam tão ou mais violentas que as fabulações propostas em "A câmara sangrenta". No conjunto de contos, preferi os mais extensos. Quanto mais sucinta, mais alegórica é a escrita da autora, o que dificulta a compreensão ou o mero envolvimento com as narrativas. Além de instituir diferentes pontos de vista, narradores e brincar com diferentes estilos, Carter faz a questão de instituir personagens femininas fortes, que não se submetem a padrões impos

Niétotchka Niezvânova (Doistoiévski)

"Niétotchka Niezvânova" marca uma fase crucial na biografia de Dostoiévski - é o romance ao qual o autor se dedicava antes de ser preso pelo regime czarista, ameaçado de fuzilamento e forçado a trabalhar na Sibéria. Incompleto, hoje o livro é considerado uma novela por muitos críticos - apesar da complexidade de seus núcleos de personagens. Inicialmente subtitulado "História de uma mulher", ao que tudo indica o projeto inicial da obra era constituir-se em uma obra de formação. No entanto, no universo de Dostoiévski nenhuma classificação dá conta do enredo; caso fosse terminado, provavelmente o romance teria uma protagonista feminina (o que não era usual no gênero) e, talvez, um relacionamento lésbico... O livro traz temas cabeludos, antecipando Freud em alguns bons anos. Além da relação doentia da protagonista com o padrasto (incluindo o desejo de morte da mãe), há um envolvimento amoroso com outra menina em plena infância. Beirando o inverossímil, a obra parece

O orgulho (filme de 2017)

Difícil assistir a "O orgulho" e não lembrar de "Pigmaleão" (peça de Bernard Shaw que foi adaptada para o cinema, estrelando Audrey Hepburn). E mais difícil ainda não associá-lo às complicações morais do texto sobre a vendedora de flores. Se, em um livro escrito em 1913, o preconceito e o machismo têm de ser contextualizados, mais difícil é fazê-lo com um longa produzido mais de 1 século depois. Na trama, uma garota francesa, de ascendência árabe, tem de enfrentar um professor racista logo no primeiro dia de aula. Com o ataque de xenofobia viralizado, o mesmo docente resigna-se a adotar a aluna como sua pupila em em concurso de retórica, com o objetivo de limpar a imagem da instituição em que trabalha. Assim como adoro "Pigmaleão", também encontrei elementos maravilhosos nesta obra. As discussões sobre retórica e o poder das palavras são o grande mérito da trama, conferindo-lhe certa profundidade.  Há aspectos interessantes em relação à abordagem do pr

Maya Angelou: e ainda resisto (filme de 2016)

Pouco conhecida entre os que vivem imersos na bolha cultural da branquitude, Maya Angelou é um ícone da resistência negra. Sua longa vida constitui-se em uma série de lutas contra o preconceito nas diversas faces que assumiu - desde os resquícios da Guerra Civil até as reivindicações de Rosa Parks, Malcolm X e Martin Luther King. Autora de vários livros biográficos, a escritora teve uma vida absolutamente impressionante: foi mãe aos 17 anos, cantora, atriz, diretora, prostituta, autora, roteirista, poeta... Fez discurso de posse para a presidência, casou-se diversas vezes, viveu no Egito e em Gana, aliou-se a diversos movimentos sociais. E, somado a tudo isso, a infância traumática: abandono parental seguido de um estupro aos 8 anos, o que resultou em uma mudez absoluta durante 5 anos. Uma leitura rasa dessa vivência poderia transformar Maya em um símbolo perfeito da meritocraria - no entanto, de tantos papéis exercidos ao longo da vida, este é um em que ela não se encaixa. O filme

Severina (Rodrigo Rey Rosa)

Após assistir ao filme "Severina", fui imediatamente atrás do livro que o inspirou. E, para a minha surpresa, o longa uruguaio toma como base uma trama guatelmateca.  Há leves insinuações de que a história ocorre em um tempo conturbado, de muitos conflitos políticos - e é nesse contexto que personagens mergulhados nos livros ganham ainda mais força. Afinal, a literatura também não é fuga?  Voltando à nacionalidade da obra: ao assistir ao filme não consegui criar relações possíveis entre o contexto atual de um país latino com a história; assim, o  fato de ambientar-se, em princípio, em um país centro-americano fez que algumas referências da obra ficassem muito mais claras para mim.  A produção audiovisual é bastante fiel ao texto original, que é curto (talvez classificável como novela). Ainda que excelentes complementos, a trama de Rodrigo Rey Rosa traz mais elementos de encanto. O simples fato de ser um livro que fala sobre livros já potencializa a metalinguagem ao máximo

Frida Kahlo: uma biografia (María Hesse)

Uma das minhas impressões mais fortes ao visitar o México foi ver o quanto Frida, um símbolo de resistência e inconformismo, acabou se tornando um produto altamente vendável. Enquanto aqui no Brasil a vemos mais associada ao movimento feminista, em seu país de origem ela é usada para vender desde chaveirinhos até chocolate quente.  Nesse contexto de hipercomercialização, para que mais uma biografia sobre a pintora? María Hesse responde a esse questionamento de forma brilhante, elaborando um livro que apenas aparentemente é mais do mesmo. A grande ideia da artista espanhola foi recontar a vida da pintora mexicana com ilustrações autorais. Assim, todo o livro conta com belas releituras dos quadros e dos momentos mais impactantes de sua biografia. Tal como a linguagem da mexicana, os desenhos de Hesse são profundamente alegóricos - obras de arte exclusivas, ainda que tão inspiradas por Frida. Recomendável para um público juvenil, com linguagem bastante acessível, não deixa de ser um

Fazendeiro do ar (Drummond)

Publicado quase na sequência de livros-chave da obra drummondiana ("A rosa do povo" e "Claro enigma"), "Fazendeiro do ar" passou mais despercebido pela crítica. No entanto, não se trata de uma reunião de poemas menores, mas sim de temas consolidados na produção do itabirano. É um livro "cristalizado", com os assuntos poéticos depurados ao extremo. O poema mais famoso do conjunto talvez seja "O enterrado vivo", que nos dá muitas pistas da construção do livro: O Enterrado Vivo Carlos Drummond de Andrade É sempre no passado aquele orgasmo, é sempre no presente aquele duplo, é sempre no futuro aquele pânico. É sempre no meu peito aquela garra. É sempre no meu tédio aquele aceno. É sempre no meu sono aquela guerra. É sempre no meu trato o amplo distrato. Sempre na minha firma a antiga fúria. Sempre no mesmo engano outro retrato. É sempre nos meus pulos o limite. É sempre nos meus lábios a estampilha. É sempre no meu

Livros em chamas: a história da destruição sem fim das bibliotecas (Lucien X. Polastron)

Meu desejo de ler esta obra veio após assistir, estarrecida, ao incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro. No entanto, se o que buscava era algum consolo - ou explicação - para a destruição de nosso acervo histórico, nenhuma dessas expectativas foi atendida. E isso não se dá por falta de qualidade, muito pelo contrário: o que Lucien X. Polastron faz, ao longo de mais de 400 páginas, é construir um panorama de como as bibliotecas foram (e continuam sendo) dizimadas em função de descaso, ódio político e religioso. Ao fim da leitura, ficamos espantados pelo fato de ainda termos conservado algumas raras obras depois de tantos séculos de queima de livros. A imersão na leitura não é um processo fácil. Com uma linguagem de historiador, o autor não se preocupa em oferecer a contextualização de cada período e local que descreve. Há o pressuposto de que o leitor já conheça de antemão os muitos nomes e dados que serão oferecidos no livro para relatar os casos de destruição de bibliotecas. A

A rebelião dos pinguins (documentário de 2007)

Com apenas 40 minutos e elaborado com poucos recursos técnicos, ainda assim "A rebelião dos pinguins" é um documentário que marcou época. Foi um dos principais meios de divulgação da mobilização popular dos alunos chilenos, que acabou inspirando os estudantes brasileiros a fazer o mesmo em 2016. O grande mérito do documentário é dar a merecida voz aos alunos, em vez de priorizar especialistas diplomados (mas distantes da sala de aula). Acompanhamos por meio de seu olhar o porquê das ocupações e como se deu o aparente fim da revolta - assim como vemos o quanto essa força política dos estudantes tem potencial para mudar muito de nosso cenário atual.

O semelhante (Elisa Lucinda)

Primeiro livro  (fora as publicações independentes)  da multifacetada artista, "O semelhante" me demandou um certo tempo de leitura. Talvez o que tenha me afastado um tanto da obra é o quanto ela está visceralmente ligada a uma performance, ao recitar interpretado. O texto no papel, descolado do seu contexto usual de leitura, tornou o meu envolvimento menos instantâneo. Dividida em 4 partes, a leitura se mostrou mais interessante para mim ao final. Enquanto as 2 primeiras divisões do livro trabalham temas mais intimistas (o eu poético e as relações amorosas), do meio para o fim as temáticas me impactaram mais: o ser mulher, a relação com a divindade e com os problemas do país. É uma reunião de poemas bastante fortes, em que a artista já reivindica pautas que hoje estão cada vez mais consolidadas. Lançado em 1992, é um livro mais moderno do que nunca - e que vale ser levado a saraus e slams, por toda a carga poética e social que não se satisfaz apenas no papel impresso.