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Mostrando postagens de fevereiro, 2018

Argonautas (Maggie Nelson)

Há ao menos 4 categorias em que essa obra se encaixa, segundo sua ficha catalográfica, e nem mesmo o conjunto de todas elas é capaz de definir o gênero de "Argonautas". Talvez intencionalmente, a impossibilidade de classificar o livro reflete um de seus temas principais: a categorização impossível dos gêneros sexuais. Maggie Nelson retrata aspectos de sua própria vida utilizando-se de fontes filosóficas diversas (o que fez surgir uma nova tentativa de designação para este tipo de livro, a "autoteoria"). Um dos principais temas que a guiam é a sua relação com uma mulher biológica, que passa por tratamento hormonal e cirúrgico para redefinir sua aparência. Durante boa parte da leitura, não consegui visualizar a/o parceira/o de Maggie; só ao final do livro vamos tendo acesso às peculiaridades de seu gênero sexual. Nossa falta de possibilidades para definir é compartilhada pela autora, que varia o tratamento dado à sua companhia amorosa ao longo da obra: ora no mascul

Eu me chamo Antônio (Pedro Antônio Gabriel)

Frases de efeito escritas em guardanapos de bares - essa é a ideia central de "Eu me chamo Antônio", o que torna a sua proposta estética simples, mas interessante. Confesso que esperava menos do livro; se há clichês, também há construções surpreendentes, que lembram um pouco dos trocadilhos literários de um Mia Couto. Se lida com certo vagar, degustando de cada composição, é uma obra que vai crescendo em interesse.

Turtles All the Way Down - John Green

John Green é autor de  best-sellers  com protagonistas adolescentes, o que faz muita gente virar o nariz para o escritor antes mesmo de conhecê-lo. Se, por um lado, ele atende sim às expectativas da grande mídia (com o lançamento de obras que são de um estrondoso sucesso editorial), por outro não deixa de ser alguém que foge dos rótulos literários. Turtles All the Way Down  talvez seja o seu livro mais bem acabado, que serve como exemplo do quanto o estilo de Green não obedece a classificações simples. Com foco em uma adolescente que tem TOC, o livro tanto poderia ser reduzido, superficialmente, tanto a um romance  Young Adult  quanto um  Illness Book , pela temática que aborda. Entretanto, é mais do que isso. Talvez por ter sido diagnosticado com TOC, o autor consegue produzir um relato bastante verossímil de uma doença que, de tão popular, acabou sendo inferiorizada. É tudo muito sensível, permeado por uma escrita bonita, cativante. É mais do que um livro gostoso de ler; é uma obra

Cora Coralina - Raízes de Aninha (Clóvis de Carvalho Brito/Rita Elisa Seda)

Livro que originou o filme homônimo, "Raízes de Aninha" é uma bela investigação em torno da vida da poeta mato-grossense, tão inferiorizada pela crítica. Dialogando com o nosso tempo, de redescoberta das grandes mulheres que acabaram sendo silenciadas/esquecidas, o trabalho de arqueologia pessoal dos autores ajuda a desmitificar a ideia de uma Cora doce, passiva, frágil. A ideia, amplamente difundida, de que Cora é uma escritora tardia (que só publicou o primeiro livro aos 75 anos) é negada com base em vários documentos. Publicar não foi um acaso na vida da autora, que desde adolescente esteve envolvida com a imprensa, escrevendo vários artigos para jornais e revistas da época. Além disso, já era considerada como uma grande escritora por seus pares - antes mesmo de lançar a primeira obra. Afinal, empreendedora e ativa, Cora Coralina se fazia ouvir  mesmo sem o apoio formal do livro impresso. Os vários trechos de entrevista em que a própria autora desmente o mito da sua id

Cora Coralina - Coleção Melhores Poemas (seleção de Darcy França)

Nunca me interessei em ler Cora Coralina, por ter me apegado à visão que os livros didáticos e grande parte da mídia criaram em torno dela: a da velhinha frágil e submissa que apenas aos 75 anos conseguiu publicar o seu primeiro livro. Assistindo ao documentário sobre a vida da poeta ("Raízes de Aninha"), pude abandonar, com alegria, os estereótipos que me afastaram tanto tempo da escritora - doceira, mas nada dócil. A poesia de Cora é, em grande parte, uma reflexão desoladora. Um dos muitos mitos desconstruídos em seus versos é o da infância rousseauniana; o que vemos nos poemas da autora sobre a infância é uma análise quase freudiana de traumas e incertezas que reverberaram na vida adulta. Se há também os versos mais nostálgicos e saudosos, eles não eliminam a força de sua poesia mais contestadora. Ainda que seja uma mulher de seu tempo, agarrada a certo conservadorismo, Cora é também vanguardista. A voz feminina, mesmo regida por paradigmas sociais, tem força o suficie

Retorno a Brideshead (Evelyn Waugh)

Somos muito dos livros que lemos - o que torna cada experiência no mundo da leitura única, pois é construtora de uma identidade singular. Curador da TAG do mês de janeiro, Luis Fernando Verissimo foi uma criança alfabetizada em inglês, o que o tornou bastante familiarizado com o idioma e toda a sua cultura. Ao escolher o livro do mês, o autor apostou em uma obra que pouco cativa quem não tem a mesma familiaridade com as referências culturais da língua inglesa. "Retorno a Brideshead" tem elementos que o aproximam de séries como "Downton Abbey" e "The Crown", mas não consegue tantos fãs brasileiros quanto essas produções televisivas. São muitas as referências específicas da cultura britânica - mesmo com o apoio de várias notas de rodapé, é difícil identificar-se com a narrativa. O ponto de maior interesse na trama talvez seja o fato de retratar, de forma implícita, um relacionamento homossexual e, de forma explícita, o panorama da sociedade inglesa de al

Deslocamento (Lucy Knisley)

Relações familiares são complexas, permeadas de emoções e convivências distintas. No universo que abrangem, há personalidades, graus de parentesco e gerações diferentes, que por vezes tentam manter um diálogo para além dos laços de sangue. É nessa perspectiva de entender melhor o conceito de família que a quadrinista Lucy Knisley nos revela, simultaneamente, dois diários - tanto o dela, relato de um cruzeiro que fez com os avós, quanto o do próprio avô, elaborado na época em que participou da guerra. Ao reler as entradas redigidas por seu parente, a autora tenta resgatar a história dos avós, de quem eles foram antes de serem tomados pela idade. Nesse exercício de empatia, procura fontes para entender melhor as necessidades dos dois - tanto lavar as suas calças sujas quanto descobrir o porquê de terem arriscado uma viagem mesmo com a saúde tão debilitada. A história é tocante, e ao revelar sua fragilidade e preconceitos, a escritora causa identificação no leitor. Afinal, quem de n

A amiga genial (Elena Ferrante)

Elena Ferrante é uma das personalidades literárias de maior destaque dos últimos anos. No entanto, sua produção não é recente; se os seus livros ocuparam o foco da mídia recentemente (estimulando as traduções brasileiras), talvez seja, em grande parte, por seu olhar mais feminino (ista?) sobre o mundo. Autora polêmica, ela consegue angariar muitos leitores ainda que seus temas sejam bastante delicados. Ao abordar na sua tetralogia napolitana a história de duas amigas, a italiana ora fere os brios dos homens (com retratos bastante intensos da violência masculina), ora destrói o conceito de sororidade (revelando o quanto a relação entre duas mulheres pode ser permeada de amor e ódio). "A amiga genial", primeiro livro da série, já nos introduz ao universo de Lena e Lila, amigas que vivem um relacionamento bastante destrutivo. Com personalidades opostas, passam grande parte da trama espelhando-se uma na outra, em uma competição constante (com apenas breves momentos de irmanda

Funny Face (filme de 1957)

O mito grego de Pigmaleão conta a história de um escultor que se apaixona pela própria obra; como em muitos dos contos dos antigos, essa história traz em seu cerne uma questão universalmente humana. Afinal, como não querer modificar o ambiente e as pessoas que nos cercam para reduzi-los à nossa própria semelhança? "Funny Face" retoma essa ideia ao apresentar um enredo de transformação - tanto que o seu título traduzido é "Cinderela em Paris". A protagonista da obra, interpretada por Audrey Hepburn, é uma vendedora de livros, interessada em filosofia, que aceita ser modelo para poder assistir às palestras de um professor na cidade-luz. Assim, além de submeter-se a uma carreira desconhecida, adquire trejeitos mais elegantes e requintados para obedecer às expectativas da época. A jogada de cores da produção em technicolor e a fotografia, somadas a inovações na edição do vídeo, fazem com que o longa permaneça moderno - ao menos na parte técnica.  Logicamente

In your eyes (filme de 2014)

Bem avaliado no IMDb e em outros sites mais generalistas de cinema, o filme é um desastre para quem espera o mínimo de conteúdo em uma narrativa. Previsível, meloso, inverossímil, com pontas soltas e diálogos pífios - e, se é bem avaliado, talvez seja o retrato de uma sociedade incapaz de discernir uma boa história de um clichê redundante.

Whiplash (filme de 2014)

O que forma um talento? Ele é intrínseco, natural, ou pode ser desenvolvido? E caso possa ser criado, como fazê-lo? Quais os limites do esforço? Onde acaba o trabalho duro e começa a arrogância? Whiplash  tem como função primordial propor questionamentos, como os citados acima. Quem espera uma história linear, com introdução, desenvolvimento e clímax, pode se decepcionar com o longa - afinal, nele a narrativa traz poucos acontecimentos (e, quando o faz, lida com fatos incômodos para o espectador). Se considerarmos apenas o objetivo de incitar debates sobre a formação do artista, o filme é bem-sucedido. Seu maior problema, com a sequência de polêmicas que traz, é que apresenta apenas personagens com os quais pouco ou nenhum envolvimento é possível. E, se em um filme sobre arte não simpatizamos com os artistas, um questionamento maior emerge: como gostar da criação artística sem apreciar o elemento humano?