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Mostrando postagens de março, 2018

Segundo Eu me chamo Antônio (Pedro Gabriel)

Tudo o que o primeiro "Eu me chamo Antônio" tinha de bom, como os trocadilhos que lembravam quase a arte poética de um Mia Couto, se perde neste segundo volume.  Nele há textos maiores exageradamente dramáticos e nenhuma graça nos poucos jogos de palavras curtos que restam. É dispensável.

O diário de Anne Frank (Quadrinhos por Ari Folman e David Polonsky)

Adaptações literárias para quadrinhos costumeiramente enfrentam diversos dilemas: a fidelidade (ou não) ao texto original, a escolha entre uma linguagem facilitadora ou para iniciados, a ênfase no enredo ou na criação livre de ilustrações. Nesta edição, que é a oficial do Instituto Anne Frank, todas essas questões foram resolvidas com maestria. Para quem conhece o livro em que se baseia, a HQ é um excelente complemento visual. Afinal, o anexo em que Anne teve de se esconder durante a Segunda Guerra é uma estrutura difícil de imaginar, ainda que as descrições da menina em seu diário sejam fartas. Com esse viés de ilustrações quase didáticas (quando precisam ser), a versão adaptada pode angariar também leitores para conhecer a obra original. O ponto forte da adaptação, contudo, é a liberdade visual que os quadrinistas se concederam. As referências que marcaram a vida de Anne - os livros, quadros, artistas de que gostava - são incorporados no traço para ajudar a narrar a sua própria h

História do novo sobrenome (Elena Ferrante)

Para muitos leitores, é o segundo volume da Tetralogia Napolitana que realmente "engata" a trama; no entanto, para chegarem a essa conclusão, é fato que foram fisgados desde o primeiro volume. Se o início da história de Lenu e Lila tem um ritmo mais pausado, de apresentação de personagens, não é por isso que deixa de revelar a maestria de Ferrante ao criar ambientações, personalidades e cliffhangers surpreendentes. Daí a nossa vontade de prosseguir na história, independentemente da diversidade de ritmos e tons que nos guiam por ela. A "História do novo sobrenome" retrata o ingresso das protagonistas na vida adulta. Assim, temas como casamento, sexualidade, perda da virgindade, estudos, carreira, filhos passam a compor o cenário antes ocupado por bonecas e brincadeiras de rua. No entanto, alguns elementos da infância das amigas perduram na nova fase, ainda que travestidos de nova roupagem: a violência, a competição e o desejo de vingança são alguns dos mais importa

The Ride Down Mount Morgan (Arthur Miller)

O contexto é um dos elementos formadores de todo e qualquer tipo de texto - e, ainda assim, faz-se mais ou menos necessário de acordo com a obra que encaramos. No caso de Arthur Miller, dramaturgo que dialoga diretamente com a história dos Estados Unidos em suas peças, conhecer o pano de fundo é, portanto, ainda mais essencial. Visto fora da ótica do seu entorno, "The Ride Down Mount Morgan" é uma comédia singela sobre bigamia, com alguns diálogos excepcionalmente bem construídos. No entanto, tomando-a como uma crítica direta ao governo conservador de Ronald Reagan, cresce em leituras e significações. O próprio mote fundamental da trama (a bigamia) pode ser lido como uma alusão à Guerra Fria, na qual a polarização e a vontade de posse concorrem de forma nada amistosa. A presença de personagens de diferentes extratos culturais e religiões ajuda a entornar o caldo sociopolítico, sendo tudo construído por meio de uma linguagem bastante poética. Ainda que nos falte o elemento

O mordomo da Casa Branca (filme de 2013)

Os primeiros cinco minutos de exibição são um prenúncio do pouco que podemos esperar deste filme: um dramalhão exagerado, cheio de clichês e com uma visão frágil da política dos Estados Unidos. O único aspecto que talvez faça valer o nosso desperdício de tempo é o panorama de décadas dos EUA costurado com os retalhos de uma única história individual. Há uma certa unidade (inegável) na obra, mas isso não basta para garantir-lhe alguma qualidade. Um exemplo do fraco revisionismo histórico são os retratos de J. Kennedy como um herói e de Nixon como um homem destruído - sendo que ambos mataram no Vietnã (sejam os nativos, sejam os estrangeiros). Outro, que podemos citar, é o discurso bastante comprometido em relação ao movimento dos Panteras Negras. Afinal, mesmo com um personagem principal negro, o longa não escapa de forjar preconceitos étnicos e de comprometer o discurso que deveria defender. 

J. Edgar (filme de 2011)

Leonardo DiCaprio é um ator de quem aprendi a gostar ao longo do tempo; afinal, mesmo levando-se em consideração o clichê "Titanic", a soma de papéis instigantes do intérprete é muito maior. No entanto, em "J. Edgar" o naufrágio (moral) se repete. O fato de contar a biografia do fundador da estrutura do F.B.I. como o conhecemos hoje já é o suficiente para deixar o espectador com um pé atrás - e quem dera fossem os dois. Ainda que tente, o longa pouco consegue ir além do discurso que o próprio J. Edgar defendia, ou seja: preconceituoso, arrogante, imperialista e cruel. O pano de fundo talvez interesse quem estuda a história do país. Fora isso, o único ponto positivo é o retrato do protagonista em sua relação ambígua com a própria sexualidade. Entretanto, não consegui decidir se esta abordagem é uma tentativa de dar profundidade à história ou, simplesmente, de tornar o monstro mais humanizado. DiCaprio já foi melhor - mesmo quando achava que era o dono do mundo.

A princesa e o plebeu (filme de 1953)

Com características de um conto de fadas moderno, "A princesa e o plebeu" também consegue assimilar um pouco da atemporalidade típica do gênero. Na obra, Audrey Hepburn interpreta uma princesa enfadada com os protocolos, que decide fugir por uma noite - na qual, obviamente, acaba encontrando seu grande amor. Apesar de o enredo, a grosso modo, parecer pueril, ele consegue manter o interesse do espectador. Afinal, por um lado, temos as atuações cativantes de Hepburn e de Gregory Peck e, por outro, o cenário de Roma como pano de fundo. O final surpreendente é um dos pontos altos da obra, que faz ela ir bem além de uma simples história da carochinha, além de ressaltar o caráter forte e vanguardista da protagonista - em plenos anos 50.

O que te faz mais forte (filme de 2017)

O filme narra a história de um homem que perdeu as duas pernas durante um ataque terrorista na Maratona de Boston. Não há grandes pontos de destaque na obra, principalmente em função de uma neurose em relação a ataques que acaba desvirtuando qualquer boa intenção que o longa possa ter tido inicialmente. Um dos poucos aspectos mais interessantes é o retrato da família da protagonista, que faz da sua conversão em mito nacional uma oportunidade para conseguir fama e dinheiro. A atuação de Gyllenhall é suficientemente boa, mas não consegue salvar um enredo fraco.

O abraço da serpente (filme de 2015)

Este é um filme que causa estranhamento; afinal, sua temática raramente é mostrada de forma isenta de clichês no cinema. Em "O abraço da serpente" temos acesso a culturas indígenas apresentadas sem maniqueísmos, heroicizações ou vilanizações desnecessárias. E por isso o choque: aqui somos nós quem entramos na vivência do outro, do que nos é alheio - e não o contrário. O mais interessante é, diante da nossa desconfiança natural de espectadores, descobrirmos que todo o enredo é baseado em relatos de viagem reais. Assim, por mais que algumas cenas nos pareçam inverossímeis, elas só refletem um contexto que nos é absolutamente desconhecido. Filmado em preto e branco, o longa parece ter como objetivo principal discutir de um ponto de vista filosófico as culturas indígenas. Por isso, a opção pela cor, neutralizando a exuberância das paisagens para colocar em foco o discurso da alteridade. 

Tempo de despertar (filme de 1990)

Quando me propus a ler "Tempo de despertar", do neurocientista Oliver Sacks, estava em uma fase de absoluta paixão pelo autor. Esta obra, primeira a ser publicada por ele, acabou estancando um pouco minhas ganas de lê-lo; por ser um livro de estreia, conta ainda com uma linguagem um tanto pesada, demasiado científica. Demorei meses para terminar a leitura. E um dos capítulos que fez valer a pena chegar até o final é o que revela os bastidores do filme homônimo. Sacks, representado nas telas por Robin Williams, analisa com um olhar atento o processo de incorporação de personagem tanto por seu próprio intérprete como por Robert De Niro. É uma delícia o relato do médico, que vai percebendo aos poucos como o ator vai se apropriando de seus trejeitos - desde a gestualidade até o modo de pensar. Pelo relato do escritor, também ficamos conhecendo um pouco mais do processo criativo de Robert De Niro - suas atuações de crises nervosas eram tão verossímeis que chegaram a confundir o

Lady Bird (filme de 2017)

Assistido de forma mais superficial, restrito à primeira camada de significados que apresenta, "Lady Bird" é um filme banal. No entanto, o roteiro despretensioso apresenta características que convidam a uma leitura mais profunda e carregada de significados. Por retratar uma experiência pessoal de forma bastante íntima, a obra não atinge a um público vasto; ela é mais tocante na medida em que a identificação com a protagonista e sua relação problemática com a mãe se torna mais forte. Para o espectador que se vê nos conflitos de Lady Bird, o filme mistura doses de nostalgia com catarse. Dessa forma, é criado tanto um desenrolar de trama marcado por elementos afetivos quanto um final impactante, que consegue ser conciliador sem apagar as diferenças. 

The Square (filme de 2017)

Qual é a utilidade da arte ? Para quem serve a arte contemporânea ? As indagações acima são consideradas inocentes diante do leque de possibilidades de uma obra artística - afinal, ela não tem de servir a ninguém e nem ter um uso funcional para ser carregada de significados e potencializadora da vida. Ideologicamente, portanto, a resposta aos questionamentos surge de forma simples; no entanto, como bem mostra o filme "The Square", a arte é também consumo - restrita, elitista, por vezes degenerada. Absolutamente sarcástico, o roteiro do filme centra-se no contexto de um museu sueco de arte contemporânea, revelando um pouco do backstage  desse universo. Por meio das transações realizadas, da busca por popularidade, da discussão apoiada em jargões vazios, aos poucos o espectador percebe que o ambiente corporativo de um museu pouco difere do de uma empresa ou de um banco. Assim, as perguntas propostas inicialmente se expandem: a finalidade da arte é ser capitalizada ? Quem

Tempo de despertar (Oliver Sacks)

Meu autor de 2017 foi Oliver Sacks, que, mesmo longe do mundo literário, me apresentou as grandes possibilidades ficcionais da mente humana. Neurologista, o autor faz de seus diagnósticos relatos pessoais, em que podemos acompanhar casos clínicos quase inverossímeis de tão descolados da nossa realidade habitual. "Tempo de despertar", primeiro livro do cientista, acompanha a história de pacientes aparentemente catatônicos e a descoberta de uma droga que irá "despertá-los" - de forma intermitente e não isenta de conflitos. O interessante nos relatos de Sacks é que, além de colocar-nos em contato próximo com cada doente, amplia o nosso paradigma acerca de conceitos complexos, como normalidade e loucura. Dotar pacientes, considerados casos perdidos, de voz, notar suas personalidades, registrar seus desejos, enfim, humanizá-los - este é o trabalho de Sacks, tão avesso à medicina tradicional. Por dar relevância às histórias pessoais, o autor não acredita em soluções f