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Mostrando postagens de abril, 2018

O duplo (Dostoiévski)

Segundo livro publicado por Dostoiévski (apenas alguns dias após o lançamento de sua obra de estreia, "Gente pobre"), "O duplo" conta com uma temática e um estilo de narrar completamente diferentes daqueles que lançaram o autor no mundo literário. Os críticos da época, que receberam muito bem seu primeiro romance, não conseguiram aceitar a transformação súbita que se opera neste livro, tão diferente de tudo o que se havia escrito até então. Além de retratar o típico homem explorado, funcionário público comum e empobrecido (uma das temáticas da literatura da época), o que Dostoiévski faz de absolutamente inovador é retratar um homem cindido. Assim, mergulha fundo na psicologia humana para criar um enredo tão confuso quanto o seu protagonista. Somos tragados pela profunda dubiedade de Golyádkin, a ponto de não sabermos distinguir os limites dentro da própria ficção. Permeada de humor, a obra é extremamente irônica em relação a todo o contexto que narra; ninguém es

História de quem foge e de quem fica (Elena Ferrante)

Terceiro livro da Tetralogia Napolitana, este romance de Elena Ferrante (ou esta parte do que, no fim, é uma única narrativa) é mais intrigante do que as duas obras anteriores. Ainda que a narradora de toda a história (Lenu) seja uma mulher adulta, a sua voz confunde-se à faixa etária que conta. Assim, se no primeiro romance ainda temos um tom de descoberta e fascínio diante do mundo e das possibilidades que ele oferece, neste volume a desilusão e a agressividade de Lenu-narradora/Lila-narrada são muito maiores. Cobrindo um recorte de tempo amplo (vários anos entre o casamento e o divórcio da narradora), a lógica é que o ritmo do enredo encurte-se. Com uma estrutura naturalmente cativante, o pé no acelerador apenas fisga ainda mais o leitor, fazendo-o querer acompanhar o desenrolar e o desfecho de uma das histórias de amizade mais sincera e arrebatadora da literatura. Elena Ferrante não é uma autora poética, que prenda o seu leitor com frases de efeito. Brusca e sucinta como a real

Cartas brasileiras (organização Sérgio Rodrigues)

Inspirado na antologia de Shaun Usher, o livro reúne o que seriam as cartas mais marcantes da história brasileira segundo a visão do jornalista Sérgio Rodrigues. Tal como na versão original, a diagramação bem-cuidada e a edição cheia de fac-símiles e fotografias ajudam a dar o gosto da leitura. Afinal, em um contexto no qual as cartas quase desapareceram, reconstituir o seu ambiente de produção é ajudar a inserir o leitor em um ambiente quase arqueológico de redescoberta do gênero. Algumas das epístolas recolhidas para a antologia são mais interessantes do ponto de vista histórico do que pelo prazer da linguagem que despertam. No entanto, a seleção feita é sim bastante rica e capaz de cativar o interlocutor.  Sem fiar-se ao passado, o organizador soube encontrar algumas pérolas dentre as missivas modernas, como a carta de Temer a Dilma, na qual o golpista reclama da falta de confiança que sente no governo. Enfim, múltipla e diversa, a coletânea sabe agradar a todos os gostos (e mes

Hiroshima (1945-2007)

Uma espécie de exposição em formato de livro, "Hiroshima" reúne ilustrações feitas por sobreviventes da bomba atômica. Elaboradas muitos anos após o ataque, registram o que se tornou mais marcante para as vítimas depois de muito tempo lidando com as consequências da radiação e com suas perdas pessoais. Dessa forma, a obra não é a reconstrução histórica do que foi esse episódio da guerra, mas uma coleção artística com a visão ressignificada e ressignificadora dos que vivenciaram o momento. Belamente ilustrada, a grande falha da publicação são os textos de introdução, que ora repetem as mesmas informações, ora as contradizem, tornando o terreno do leitor bastante escorregadio.

Só garotos (Patti Smith)

O impacto de "Só garotos", obra da multifacetada artista Patti Smith, foi menor para mim do que o de meu livro de estreia na sua escrita, "Devoção". Talvez por contar exclusivamente com elementos autobiográficos, o romance por vezes patina em algumas questões como o limite da verossimilhança, a romantização de episódios históricos, o apagamento do drama em alguns contextos. O que, em uma obra de ficção, pode ajudar a dar o tom da narrativa nem sempre funciona tão bem quando o gênero é tão pessoal e intrincado. Contudo, ainda que falho, é um excelente livro. Nada melhor para defini-lo do que a apresentação na artista na cerimônia do Nobel, em que interrompeu a canção para desculpar-se pelo excesso de emoção. Sendo a narrativa de uma vida, é de se esperar que a carga emotiva interfira no modo de construir o enredo.  Para quem se interessa pelo panorama artístico dos anos 60/70, a obra é um prato cheio de referências - de Salvador Dalí a Nina Simone, são muitos os

Gente pobre (Dostoiévski)

Minha paixão pelas Letras veio da literatura russa; ainda assim, raras vezes cruzei o meu caminho de leitora com a obra do (talvez) mais renomado entre os seus conterrâneos. As incursões que fiz pela obra de Dostoiévski, no geral, me causaram um sentimento enorme de inquietude e perturbação. Não que acredite na literatura conciliadora, de bons modos e com etiqueta refinada; contudo, o estilo labiríntico de personagens como Raskólnikov poucas vezes me atingiu com empatia. Trata-se de uma admiração distanciada: reconheço o valor do estilo, mas não me torno cativa da escrita. Em "Gente pobre", revivi algumas das sensações da leitura de "Crime e castigo", tais como a pena dos desvalidos, a claustrofobia de uma situação irreversível de pobreza, a aflição constante com as ações mal-sucedidas dos protagonistas. Ao final, diante de uma redenção (tal como ocorre na obra mais famosa de Dostoiévski), pude sentir um alívio ínfimo pela condição de miséria narrada. Tão pertur

Antígona (Sófocles)

Reverberando ao longo dos séculos, a cultura grega clássica moldou o Ocidente tal como o conhecemos hoje. Noções como a divisão da literatura em epopeia/drama/poesia, os fundamentos da argumentação, a instituição de alguns elementos jurídicos, o conceito de democracia - ou seja, vários dos elementos fundamentais de nossa organização enquanto sociedade - já constavam em escritos muito anteriores à nossa própria contagem do tempo, baseada no surgimento do Cristo. No tocante às narrativas, a mesma intertextualidade se observa. É como se, em certa medida, estivéssemos contando as mesmas histórias há milênios - talvez por elas serem fundamentais em nossa constituição histórica, talvez porque os seus significados profundos não foram compreendidos inteiramente até hoje. "Antígona", a última das peças da trilogia tebana de Sófocles, é extremamente atual. O mote do drama é o conflito entre o indivíduo e o estado, sob o viés do conceito thoureauniano de desobediência civil. Com

Poemas concretos/neoconcretos (Ferreira Gullar)

Ferreira Gullar, homem extremamente conservador em aspectos políticos, mostra-se deslocado ao tentar ser inovador demais como poeta. "Poemas concretos/neoconcretos", uma de suas primeiras publicações, reúne poucos poemas e trabalha mais em uma linha dadaísta (palavras dispostas aleatoriamente na página) do que reinventando significado e significante em uma poesia que fosse verdadeiramente visual. 

O motorista de táxi (filme de 2017)

"O motorista de táxi" é um filme que entrega a sua nacionalidade independentemente do fenótipo e do idioma coreano; a obra é produzida com características muito peculiares  dessa cultura. Um dos elementos que talvez chame a atenção do espectador é a inocência dos personagens. Assim como nas novelas típicas do país, não vemos a construção de caracteres mais complexos. Outro expediente bastante novelesco são as reviravoltas na trama, frequentes e bastante intensas. Com recursos narrativos simplistas era de se esperar, portanto, um péssimo filme. No entanto, o longa consegue atingir certa qualidade, que contrapõe-se às eventuais falhas técnicas. O contar de um fato bastante desconhecido da história da Coreia, sem eximir-se da violência, é uma das fórmulas usadas para tornar o enredo cativante. Ser inspirado em uma história real, com direito a entrevista ao final da trama, também é um modo de manter a condução de um filme singelo, porém cativante.

Júbilo, memória, noviciado da paixão (Hilda Hilst)

Quem tem medo de Hilda Hilst? Reduzida a adjetivos antagônicos - entre pornográfica e hermética -, a poeta foi pouco lida, muito criticada, publicada de maneira exígua ao longo de sua extensa carreira dedicada exclusivamente à literatura. Aos poucos, a desconstrução de tabus literários tem colocado nossas grandes escritoras ao sol, como no caso de Hilda. Afinal, basta ler alguns de seus potentes versos para percebermos o quanto o descaso da crítica e do público foi imerecido e superficial. Excluída de livros didáticos, a autora seria um excelente contraponto a tantos melosos e infinitos poemas feitos em homenagem à amada - de renascentistas a parnasianos, nos pareceria que a sina da mulher é ser objeto, e nunca a dona do seu canto. Os versos de Hilda, em que o eu lírico feminino tenta seduzir o seu homem, transformando-o em posse, conquista, território, são avassaladores. Nada da pose de espera, submissão. Neste livro a mulher é dona do que quer, ainda que seu desejo amoroso por ve

Já era (Felipe Parucci)

Entre o verossímil cotidiano e o megalomaníaco interespacial, esta é uma narrativa em quadrinhos com um ritmo acelerado de eventos e reflexões. Grande crítica à vida moderna, cria imediata empatia com o leitor que, por sua vez, também estiver cansado deste modelo insano de busca pelo capital. Caso queira encontrar um botão de "delete" para o mundo, esta pode ser a leitura recomendada. O traço é relativamente simples, com belas páginas retratando a passagem do tempo de forma bastante simples e visual. Há desvios na narrativa principal que utilizam elementos da fantasia, por vezes um tanto exagerados. No entanto, ao final toda a narrativa mostra ter mantido a coesão, cumprindo o objetivo a que se propôs. 

Che Guevara para meninos e meninas (Nadia Fink e Pitu Saá)

A Coleção Antiprincesas e Anti-heróis da Editora Chirimbote é uma pequena revolução dentro de um dos mercados editoriais mais tabus que temos: o de livros voltados para crianças. Com belas ilustrações e um texto cativante, são contadas as histórias de ícones da América Latina, apresentando aos pequenos um tipo de valentia muito mais real e valorosa que a dos mocinhos de capa esvoaçante e sunga por cima da calça. Assim como na obra voltada para Juana Azurduy, este é um livro que narra a existência de um guerreiro, o que traz uma série de questionamentos: até que ponto, afinal, suavizar a vida de quem teve de lutar, matar - e por vezes oprimir - em nome de um ideal maior? Acredito que talvez um recorte menor da biografia do Che poderia dar conta de apresentar sua história às crianças sem maiores danos.  Por mais que seja uma grande fã do projeto, acredito que crianças precisam lidar com questionamentos e problematizações - senão, caímos no risco de reproduzir os mesmos modelos da lit

Labirinto da palavra (Claudia Lage)

Perder-se no labirinto de palavras elaborado por Claudia Lage é um convite auspicioso para todos aqueles que, como a escritora, são seres que vivem pela linguagem. É o caso clássico de um livro que fala de livros - experiência metalinguística e, claro, afetiva. A autora gaúcha mistura curtas narrativas a citações de escritores, curiosidades literárias, descrições de manias de leitor. Por serem bastante curtos, os textos são facilmente devoráveis. Contudo, com aquele ar de conversa descontraída de crônica, também tendem a não marcar peremptoriamente o leitor. É uma degustação interessante, mas que não substitui o prato cheio da literatura mais ambiciosa. São muitos os dados de interesse apresentados ao leitor; no entanto, paira a dúvida sobre a veracidade (ou a pesquisa) em relação às informações exibidas. Consegui reconhecer alguns erros conceituais referentes a obras ou escritores que já havia lido, que me fizeram desconfiar um pouco do restante do livro. Afinal, em tempos de  fak

Alfonsina Storni, una biografía esencial (Josefina Delgado)

Alfonsina Storni é uma poeta injustamente desconhecida, dona de uma poética muito afim com o nosso tempo. Nascida no começo do século XX, conviveu com os estereótipos de mãe solteira, de artista pobre, de mulher indecorosa. Entretanto, mesmo sob o peso dos títulos ofensivos soube firmar-se no campo artístico com seus versos questionadores. A biografia elaborada por Josefina Delgado é bastante sucinta, o que nos permite conhecer a vida de Storni em seus momentos e fases mais marcantes. Há um certo tom romanceado que quase chega a prejudicar a leitura em alguns momentos; no entanto, a biógrafa sabe segurar a mão e consegue escapar de uma biografia com excesso de idealizações e melodrama. Claramente a vida de Alfonsina está propensa ao tom melancólico: jovem suicida e grande amiga do infeliz Horacio Quiroga, não faltam elementos para fazer da história da poeta um novelão choroso. Nossa sorte, enquanto leitores, é que essa rara biografia da poeta argentina é também sensata.

Devoção (Patti Smith)

Com pouco mais de 100 páginas no formato pocket , a mais recente obra de Patti Smith é grandiosa em sua simplicidade. Registro do processo criativo de Patti enquanto escritora, é o relato de sua devoção à arte - o que justifica o tamanho exíguo, uma vez que neste livro cada palavra está em seu devido lugar. Não há espaço para excessos quando se trata de buscar o essencial a ser dito. Costurado ao discurso metalinguístico há um pequeno conto, cujo enredo gira em torno de uma patinadora devota às suas circunscrições no gelo. Assim, o leitor encontra um duplo da autora no enredo ficcional de uma personagem também integralmente dedicada ao que faz. Talvez o nome da obra, considerando apenas a temática, pudesse ser "Vocação". Contudo, a publicação da escritora punk  é muito mais do que isso. Vai além de um chamado para a arte; é uma prece, uma devoção. Afinal, aquilo que dá significado à vida precisa ser reverenciado.

A cordilheira (filme de 2017)

No panorama político conturbado da atual América Latina, "A Cordilheira" é um filme que não pode ser analisado de maneira neutra. Ainda que não haja apologias e as alegorias sejam, em certa medida, sutis, é fato que esta é uma tentativa de retrato dos intrincados rumos dos governos de hoje. Ricardo Darín, no papel de presidente da Argentina, interpreta um personagem bastante ambíguo. As intenções nunca são claras para o espectador, que busca nas minúcias os significados não revelados. Talvez uma alegoria de Macri, o político antipopulista e elegantemente cruel é um enigma para quem vê a obra. Outro aspecto instigante no enredo é o presidente brasileiro, bastante estereotipado na figura de um coronel dotado de um discurso passional. Mais para um Getúlio Vargas do que um Lula, o personagem é um retrato curioso de como os hermanos nos veem (e, claro, não é um olhar muito gentil). Filme escuso, escorregadio, pouco explícito em suas intenções - ou seja, tal como a política d

O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça (Alberto Manguel)

O livro de Alberto Manguel é um presente para os amantes de livros desde o seu título: afinal, que leitor não quer se converter no objeto mesmo da sua paixão? Vistos como metáforas, os bibliófilos tornam-se plurissignificativos e recobertos por camadas de conteúdo. Ler é um ato histórico (a designação de "Pré-História" para um tempo anterior à escrita é um exemplo icônico dessa afirmação). Na feitura de sua obra, portanto, Manguel vai além de construir uma ode de amor pela leitura: ele situa a figura do leitor em tempos diversos e sob distintos matizes. Três são as metáforas que conduzem a argumentação do bibliófilo: o leitor visto como um viajante, como uma torre e como uma traça. Seja conhecendo mundo por meio da escrita, seja isolando-se em sua torre de marfim ou devorando os papéis que lhe aparecem à frente, o leitor é sempre um mistério para aquele que não lê. Afinal, ele tem o poder de caminhar por séculos, transitar entre pensamentos e exercitar uma das formas mais b

Viola de bolso (Drummond)

Drummond é um sutil confeccionador dos títulos de sua obra; no entanto, o leitor distraído (como eu, neste caso) pode se deixar enganar pelo canto convidativo de "Viola de bolso". Como o próprio nome diz, este é um livro informal de versos - mais do que a arte poética drummondiana, o que temos aqui são curiosidades biográficas. O livro reúne dedicatórias que o poeta escreveu, versinhos que fez para amigos ou para seduzir mocinhas. Não deixa de ser interessante perceber o manuseio da palavra pelo mineiro, seja para ser gauche  na vida, seja para rabiscar uma notinha em um papel de pão. No entanto, é preciso não ir com grandes expectativas à leitura. "Viola de bolso" não proporá que caminhemos de mãos dadas, nem dialogará com a máquina do mundo. É apenas o registro de um canto afetivo, bastante descompromissado.

Get out! (filme de 2017)

O gênero de filmes de terror, em sua tradição direcionado ao efeito catártico, dificilmente surpreende o espectador pelo enredo. Ao menos quando falamos em longa-metragens estadunidenses de grande bilheteria, o que se espera é um consumo fácil, sem grandes complicações. É justamente ao ir contra essa corrente que "Get out!" inova. É terror problematizador, que consegue garantir doses de adrenalina na mesma medida em que suscita questões incômodas. Mais do que apavorar, a obra provoca: qual é o limite do nosso preconceito? A convivência pacífica entre etnias é possível? Como conviver com o que é diferente sem querer eliminar essa distinção? Outro aspecto excelente é a ironia bem pensada. A ideia do branco "bonzinho", descolado, eleitor de Obama, é desconstruída de forma crua. Ao final da exibição, se não pregarmos os olhos à noite, não é por procurar monstros embaixo da cama - mas sim dentro de nós mesmos.

Antología poética (Alfonsina Storni)

Alfonsina Storni nasceu em 1892 e suicidou-se em 1938. Escritora argentina, absolutamente desconhecida no Brasil, é dona de uma poética singular e vanguardista - se não na forma, ao menos nos temas. Talvez o fato de ter continuado a cultivar o verso clássico (como o soneto) a tenha afastado um pouco dos movimentos literários de sua época. No entanto, no plano formal também há pequenas inovações em sua estrutura poética, como alguns textos em verso branco e livre. Fã de García Lorca e amiga íntima de Horacio Quiroga, a escritora constrói imagens insólitas, que por vezes criam uma poesia entre surrealista e parnasiana, pois há uma ênfase grande na descrição de paisagens e objetos, ainda que permeada de símbolos. As temáticas mais ousadas de Storni são as relacionadas a reivindicações de cunho feminista e ao convite da Morte. É impressionante ver, em poemas escritos 20 anos antes de seu suicídio, que já se instituía o diálogo com o próprio fim. Igualmente vigorosos são o

Auschwitz brasileiro (filme de 2017)

Dando visualidade à obra de Daniela Arbex ("Holocausto Brasileiro"), o documentário realizado pelo canal History Channel não é exatamente criativo - como já se vê pelo título -, mas é interessante na medida em que torna mais concretos os relatos citados pela jornalista em seu livro. Um aspecto chamativo são as entrevistas com funcionários do hospício de Barbacena, que submeteram internos à terapia de choque, além de terem aceitado as condições do trabalho a que se ofereceram. Assim, o filme coloca a questão da culpa em viés talvez mais problematizador que o do livro - em um contexto em que a regra eram os maus-tratos, como julgar quem foram os verdadeiros culpados pelo sistema? Podemos culpabilizar toda a sociedade que colaborou com ele? Há culpas a serem atribuídas hoje? O final do documentário, em que vemos alguns dos ex-internos vivendo em um contexto de tranquilidade e respeito, é alentador. Depois de uma sequência forte de imagens e entrevistas, traz alguma esperança

Holocausto Brasileiro (Daniela Arbex)

O título forte pode afastar, em um primeiro momento, o leitor desavisado da obra. Afinal, o genocídio judeu é um tema que vende, que gera consumo e inúmeras produções questionáveis (vide o título do livro de Augusto Cury - "Holocausto nunca mais"). No entanto, além de a comparação realizada pela jornalista Daniela Arbex ser muito razoável, ela não é inédita, como descobrimos ao longo da leitura. A situação retratada já havia sido equiparada ao Holocausto há cerca de 50 anos, por um famoso psiquiatra italiano. O livro revela o histórico do maior hospício do Brasil, localizado em Barbacena, onde mais de 60 mil internos morreram. O ponto forte da obra são as entrevistas com os poucos sobreviventes, que nos levam a descobrir que a maior parte deles fugia dos quesitos de "normalidade" por serem párias sociais (e não necessariamente terem alguma doença mental). Ser estuprada e engravidar do patrão; ser tímido; questionar o salário desigual; morar nas ruas - todos eram

História dos Estados Unidos (Leandro Karnal)

Quando os Estados Unidos vêm à tona em qualquer discussão, é difícil escapar de generalizações apressadas - sejam de repúdio ou de idealização. Com uma hegemonia notória recente (em termos históricos), o país é o eixo em torno do qual gravita grande parte dos costumes, ídolos, desejos, modos de vida que regem primordialmente a cultura ocidental. O livro organizado por Leandro Karnal tem um recorte interessante, desconstruidor de mitos bastante difundidos, seja no contexto escolar ou na mídia. A ideia da colonização de povoamento, que teria levado ao progresso do país, por exemplo, é questionada com base em dados e pesquisa histórica. O mito do presidente "bonzinho" - seja um Kennedy, seja um Obama - também é revelada em sua fragilidade. Apesar de ser um livro curto, ele é bastante eficaz em fazer uma síntese histórica (focada no leitor leigo) bastante pontual no levantamento de críticas. É uma leitura breve e esclarecedora.

Yo, Matías (Sendra) v. 5

A Argentina tem uma safra inegavelmente boa de quadrinistas. No entanto, nem sempre a qualidade dos pares é igual - e, no que se refere às tiras de "Yo, Matías", por vezes ela é bem inferior. A ideia de uma criança contestadora é já chavão no mundo das tirinhas - Mafalda, Peanuts, Armandinho... O problema de Matías é justamente o quão pouco ele questiona. Suas piadas são baseadas ou em um humor bobo ou em aspectos questionáveis, como chistes de cunho sexual. Neste volume, há a personagem de uma menina feminista utilizada mais para despertar o repúdio do que um questionamento saudável da ideologia. Há também uma sequência curta enfatizando a sensualidade natural das negras - no mínimo, muito dispensável. Enfim, Mafalda ainda reina.

O alforje (Bahiyyih Nakhjavani)

Para a fé bahá'í, tudo é relativo.   Assim, as diversas religiões são como capítulos de um grande livro espiritual, cujo posfácio prega a união geral da humanidade. Enquanto tantas crenças guiam-se pela exclusão, aqui vemos o entrelaçamento de gêneros, cores e modos de pensar. Inserido no contexto de uma fé unificadora, o livro da iraniana Bahiyyih Nakhjavani é regido por um belo discurso polifônico. Ao longo de seus capítulos, personagens de extrações sociais e religiões diversas vão narrando um único episódio, do qual retiram diferentes significados. Contar a mesma história sob diferentes pontos de vista é um recurso de enredo aparentemente fácil, que costuma descambar na inverossimilhança ou no tédio. No entanto, o sentimento predominante durante a leitura de "O alforje" é o de um estranhamento. Seus protagonistas, tão distintos de nós e tão incomunicáveis entre si, conseguem enxergar variadas verdades dentro de um breve recorte narrativo. Ao final, sobra espaço pa

A forma da água (filme de 2017)

Ainda que o Oscar não seja um atestado da qualidade das obras, a única razão que encontro para "A forma da água" ter sido o grande ganhador de 2017 é um reconhecimento retroativo pelo excelente "O labirinto do fauno". O que mais me decepcionou nesta produção é a sua apoliticidade. Há tempos não via uma obra tão maniqueísta, em que bons e maus são claramente definidos para o espectador. Quando o filme se propõe a alguma discussão mais relevante - como o racismo ou a homossexualidade -, ela é extremamente breve e superficial. Há quem leia a trama como uma bela história de amor entre diferentes. Não é chocante, entretanto, que um caso de amor com uma lagartixa gigante desperte mais empatia do que a relação entre dois homens? Del Toro já foi melhor.

Três anúncios para um crime (filme de 2017)

A tradução do título original (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri) entra no largo  hall  das versões inusitadas para nomes de obras que pouco ou nada condizem com o original (sobre o tema, procurar por "El señor que traduce los nombres de las películas", conjunto genial de tirinhas de Liniers). O jogo de palavras criado (anúncio como propaganda ou como aviso) é criativo, mas não se relaciona com o enredo da trama, já que nele só interessa o primeiro significado - outdoor, anúncio, propaganda. Outro ponto negativo deste título é eliminar o estranhamento que temos ao conhecer o título original e prenunciar uma história de suspense. TBOEM é muito mais do que isso - uma daquelas raras obras que conseguem mesclar diversos gêneros sem cair na superficialidade. Absolutamente sarcástico, o longa vai além do próprio humor que constrói. Há cenas catárticas para o espectador, assim como trechos que despertam a nossa indignação social (quase sempre adormecida nos tempos que c