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Mostrando postagens de maio, 2018

Alias Grace (Margaret Atwood) + Série de 2017

Autora largamente publicada, Margaret Atwood voltou a ser mais conhecida entre nós graças à brilhante adaptação de "O conto da aia", uma distopia criada há mais de 30 anos e profundamente atual. Pouco depois, uma versão televisiva bastante sofrível foi realizada com base em seu romance "Alias Grace". Assim, fica o questionamento: p or que é tão palpável a diferença de abordagem entre as duas adaptações?  Se em "O conto da aia" temos uma história bastante visual, com descrições de ambientes e vestimentas fundamentais para a narrativa, o mesmo não se dá com "Alias Grace". Construída em torno de diálogos e jogos de linguagem, a trama da prisioneira Grace não apresenta os elementos que poderiam facilitar sua releitura em outras mídias. O mundo interior da protagonista, vasto e misterioso, é um dos grandes charmes do livro. Aos poucos, como leitores, somos seduzidos pela capacidade de argumentação e ironia da personagem, sem nos preocuparmos em de

Manifesto (filme de 2015)

Aqui tratamos de um filme-performance, que se desenvolve por meio da leitura de manifestos importantes na história da arte. Cada excerto é narrado/lido/interpretado em contextos diversos e alegóricos. Assim, não há um fio narrativo que ligue os textos entre si; todas as conexões dependem da capacidade do espectador de criar coerência entre fragmentos tão distintos. As situações nas quais os textos surgem (ora como pano de fundo, ora como discurso gritado a plenos pulmões) têm em comum o estranhamento. Provocativo, o longa cria cenas que vão do grotesco ao inverossímil, sempre construídas em função do artista em foco. Assim, Tzara, por exemplo, é recitado mecanicamente em um contexto asséptico de fábrica. Ou seja, nada mais significativo para aquele que sempre exaltou a beleza e a violência da máquina. A escolha de uma só atriz para representar todos os papéis principais - Cate Blanchet - se justifica não só por suas interpretações excelentes, mas também como um ótimo recurso visu

Han Solo (filme de 2018)

Em princípio descolado de algum arco específico da narrativa, "Han Solo" se propõe a contar o ingresso desse personagem na batalha contra o Império. Para tanto, apostam em um ator bem mais novo, que possa recriar na interpretação e nos traços o jeito icônico de Harrison Ford. Aposta arriscada, ela não deixa tanto a desejar na recriação de um passado com outro intérprete; dentre as falhas da obra, é a menor. O que realmente incomoda na exibição do longa é a falta de uma contextualização mais profunda (como vinha sendo feito em outros filmes da saga). Para quem gosta de cenas intermináveis de lutas ou da mitologia pura de Star Wars, a trama pode até interessar. Já quem esperava um aprofundamento mais sério vai ter que torcer por filmes vindouros melhores...

Diário de uma paixão! (Ulisses Tavares)

Imerso na contemporaneidade, o poeta brasileiro Ulisses Tavares consegue encontrar espaço para a publicação de poesia, esse gênero tão anticomercial. Para tanto, faz uso de recursos diversos, como a conversa com o leitor e a afinidade com tecnologias. Com uma proposta interessante, o "Diário de uma paixão!" é construído como caderno de poesia conjunta, no qual o leitor pode arriscar seus próprios versos. Toda a diagramação é bastante convidativa, principalmente para o público juvenil. Quanto aos versos propriamente ditos, há tanto aqueles que atingem seu objetivo poético quanto os que permanecem à margem de um estilo refinado. Talvez seja o grande problema de ser um poeta largamente publicado - linguagem facilitadora e nem sempre bem construída.

Eu você (Verena Smit)

Brincando com a linguagem do design , o pequeno livro de curtíssimos poemas não deixa de ser uma proposta interessante (principalmente para quem é professor e quer despertar a paixão pela poesia em seus alunos).  No entanto, mais forma do que conteúdo, o texto não escapa de brincadeiras pobres de linguagem - algo semelhante a "a tua mente atua ou mente" ou "pavê ou pacumê?". Contudo, bonitinho e bem diagramado, vale a pena se comprado em ultrapromoção nos sebos da vida.

Back of The Throat (Yussef El-Guindi)

Publicada cinco anos após os ataques de 11 de setembro, a peça trabalha com outro cenário de crueldade que adveio como consequência da queda das Torres Gêmeas: a intolerância aos imigrantes. De origem árabe, o dramaturgo Yussef El-Guindi sabe construir falas incisivas, revelando nos diálogos de seus personagens toda a falta de tato com cidadãos que, apesar de estadunidenses, sofrem na pele a consequência de sua etnia. Construída de forma ambígua, a narrativa não deixa claro para o leitor/espectador se o que é presenciado é o ataque a um inocente ou a um culpado. Trabalhando nas frestas da dúvida, o texto abre diversas possibilidades de interpretação para o descaso e violência aplicados a qualquer um que fuja do estereótipo do branco americano.

Réquiem para o sonho americano (filme de 2015)

Como se constrói e se consolida um sistema econômico? Como naturalizar a desigualdade para impor ideologias? Como construir sonhos comuns (quase sempre inalcançáveis) para justificar a opressão de muitos em benefício de poucos? Bastante didático, este documentário tem como figura central o linguista Noam Chomsky, que vai respondendo a essas e outras perguntas com um arcabouço teórico bastante profundo. As falas de Chomsky são entremeadas a ilustrações e recortes de jornais, que servem como uma poderosa ferramenta para tornar o documentário acessível a um público leigo. Assim, o filme praticamente responde ao velho questionamento de "Entendeu ou quer que eu desenhe?", sem perder a tolerância. O economiquês é um dos grandes responsáveis pelo nosso desinteresse político. Nesse contexto, filmes como o Réquiem são fundamentais para tornar mais claro o que se oculta em tantas camadas de simbologias e significados. Economia e política são experiências que vivenciamos todos os

The Oldest Profession (Paula Vogel)

Dramaturga contemporânea, Paula Vogel traz para a sua produção temáticas polêmicas e questionadoras, fomentando discussões necessárias sobre a atual configuração de nossa sociedade. Em "The Oldest Professsion", um grupo de prostitutas de meia-idade tem de lidar com as novas políticas em seu trabalho. Não apenas precisam se esforçar mais e receber menos, para se manterem ativas no mercado, como devem reduzir seus benefícios e prazeres a zero. Vivendo para trabalhar (e não o contrário), as personagens fazem parte de um enredo que é um ácida crítica ao neoliberalismo. Quando se traz o "Estado mínimo" à tona, é preciso lembrar o que mais será minimizado: o direito à vida, à saúde, à dignidade. Desprovidas de todos os apoios emocionais e financeiros, as putas de Vogel são um apelo incisivo por uma sociedade menos desigual.

Um pai de cinema (Antonio Skármeta)

Livro que inspirou a bela produção "O filme da minha vida", esta narrativa de Skármeta foi pensada desde o início como uma história digna de ser adaptada para as telas do cinema. Não à toa que o próprio autor direcionou a obra para Selton Mello, decidindo inclusive que sua ambientação, ao contrário do livro, deveria se passar no Brasil. Para quem assistiu ao filme, o livro tem pouco a acrescentar. Idealizado como um roteiro, é um esboço bastante curto que apenas dá uma ideia do que seu diretor brasileiro conseguiu realizar.  As cores, luzes e metáforas da produção audiovisual superam sim as poucas e breves linhas de Skármeta. É um dos raríssimos casos de livros que não superam a adaptação visual.

As sufragistas (filme de 2015)

A apropriação dos discursos de minorias pela mídia sempre é controversa. Se por um lado ajuda a dar visibilidade e a reafirmar a representatividade dessas vozes nos grandes meios de massa, por outro tende a plastificar as reivindicações e superficializar seus grandes ícones. A luta pelo sufrágio universal, tema deste longa, apela bastante a um tom melodramático exagerado. Foca-se mais a emotividade das personagens do que a narrativa histórica em si, o que gera uma produção com bastante pontas soltas. Ao final, ficamos com a sensação de que o mote da obra, desde o princípio, deveria ter sido outro. Não bastam boas intenções com um recorte equivocado. São necessários mais e bons filmes sobre o tema.

Fédon (Platão)

Sem nunca ter deixado nada escrito, Sócrates foi um dos mais provocadores filósofos da Antiguidade. Se hoje temos a possibilidade de entrar em contato com o seu polêmico pensamento, é em função dos escritos de seu discípulo Platão. "Fédon" é o relato do último dos debates do grande mestre. Condenado a suicidar-se pelas autoridades da época, Sócrates passa seus dias finais em conversas acaloradas com amigos, tentando convencê-los da imortalidade da alma. É surpreendente o quanto a moralidade grega assemelha-se à cristã; nos diálogos da obra, Sócrates antecipa muitos dos fatos que se tornariam dogmas da Igreja Católica: a noção de que há um pós-morte diferente para os bons e para os maus; a ideia de um deus onipotente; o corpo efêmero e a alma imortal. A capacidade argumentativa do filósofo é cativante - e, ainda que não resista a alguns contra-argumentos modernos, ainda tem muito a nos ensinar.

Sabrina (filme de 1954)

Fruto inegável de sua época, "Sabrina" reproduz vários dos estereótipos que formaram a cultura estadunidense dos anos 1950. Se observarmos o contexto histórico da trama água com açúcar, encontraremos vários elementos da ideologia do momento: a visão da França como referência cultural, o sonho de ascender socialmente, o culto às elites, a dominação da América Central como meio do país exercer a sua "benéfica" influência moral. Ainda que mergulhado em estereótipos, há elementos vanguardistas na obra. Basta uma olhada no figurino de Hepburn para percebermos que, mais uma vez, a atriz representa o papel de uma mulher irrequieta, que não aceita os paradigmas que lhe são impostos. Ainda que o grau de contestação e irreverência seja mínimo, já é relevante quando pensamos em cultura de massa há mais de meio século. Longe de ser um grande filme ou de dialogar plenamente com nossa época, não deixa de ser um retrato divertido e interessante do momento de sua produç

A livraria (filme de 2017)

Como uma boa leitura despretensiosa, "A livraria" é um filme-conforto. Traz como cenário a Europa do início do século passado, tons pastéis, uma protagonista sonhadora que deseja despertar o apreço pela literatura em uma pequena cidade.  Bastante previsível (afinal, para ser reconfortante abre-se mão da ousadia), os melhores momentos da obra encontram-se nos diálogos da protagonista com o único leitor assíduo o povoado. Entre indicações de leitura e o nascimento da amizade, há a construção de metáforas interessantes, mais próprias do universo dos livros. O final do longa é interessante e foge levemente do desfecho esperado pelo espectador. Com pontos altos e baixos, não deixa de ser válido para quem vive de literatura.

The Lobster (filme de 2015)

O preceito básico das distopias talvez seja o de causar um estranhamento profundo, mas sem distanciar o público totalmente da realidade criada. Com caráter com um quê de premonitório, elas apontam para sociedades possíveis - não se trata de ficção científica, mas da narrativa de mundos que espelham nossos defeitos em medidas exacerbadas. Em "The Lobster", filme de difícil classificação, o efeito de distanciamento relativo pouco se mantém. O enredo se apoia fortemente em recursos do gênero real maravilhoso, criando situações bastante complexas, por vezes esbarrando no inverossímil. Com um efeito muito grande de estranhamento, o espectador passa mais tempo tentando desvendar o rumo dos acontecimentos do que criando relações entre a sua realidade e a da obra. É um longa que entretém e convida a desvendar mistérios, mas que não cria vínculos o suficiente para ser lido como distopia.

Innsaei (filme de 2016)

Qual é o papel da intuição no comando de nossas ações? E como trabalhar o tema sem cair no discurso de autoajuda, com nenhum aprofundamento mais sério sobre a subjetividade? Ainda que comece com um relato aparentemente forçado (algo como fala pronta para o TED) sobre uma profissional de sucesso que abandona a carreira em busca do próprio eu, o filme surpreende. Apesar de um tanto clichê, o mote consegue fincar raízes mais profundas ao trazer para o debate outras experiências com a intuição, inclusive científicas. Não é uma obra revolucionária, mas vai além do entretenimento namastê.

A doutrina do choque (filme de 2009)

Quem dera a menção ao termo "neoliberalismo" causasse tanto impacto quanto o temido par "comunismo/capitalismo". Palavra colocada em desuso intencional, é a que define com mais precisão o estágio econômico em que estamos hoje. E, como qualquer sistema baseado na opressão, é mortífero, criminoso, corrupto. O documentário "A doutrina do choque", inspirado em livro homônimo da pesquisadora Naomi Klein, revela os modos como o neoliberalismo encontrou seu caminho ao longo da história. Desde as ditaduras latinas até a Guerra das Malvinas, sempre é o choque o seu elemento de sucesso. Sem situações de exceção, sem crises, o sistema desmantelaria. Com uma configuração político-econômica que não é hábil para funcionar em tempos de paz, não é de se estranhar o mundo conturbado, excludente e absolutamente violento em que vivemos.

Saving Banksy (filme de 2017)

Arte das ruas por excelência, o grafite existe em função de sua contestação tornada pública. Como reconsiderar sua existência quando ele é aprisionado em museus, vendido a preços exorbitantes e vira um bem exclusivo das elites? "Salvando Banksy" é um documentário curto, mas extremamente interessante por mostrar uma situação quase inverossímil: grafites de Banksy e outros artistas, removidos de paredes graças a uma engenharia pirotécnica, são comercializados em grandes e refinadas feiras de arte. O modo de produção dessa arte - considerado ilegal - reverbera em sua captação: assim como o grafite invade ruas da cidade sem pedir passagem, ele também é levado embora sem o pagamento de direitos ou a autorização do artista. Todo esse contexto reconfigura a posição da arte em nosso século, de um modo bastante desanimador - afinal, se até a contestação pode ser comercializada, o que nos resta que não possa ser transformado em capital?

Eu, Daniel Blake (filme de 2016)

Retrato do homem que já não pode ser comercializado pelo sistema, "Eu, Daniel Blake" é um filme claustrofóbico. Nele acompanhamos a rotina de um aposentado na busca pelos seus direitos básicos - dentre eles, a própria remuneração que lhe é devida. Completamente abandonado pelo Estado e inútil para as corporações privadas, o protagonista vive a tentativa repetidamente frustrada de afirmar a sua própria identidade (vide o título), manter a integridade mesmo depois de despedaçado. Uma a uma, suas esperanças vão se esvaecendo. O que lhe dá força para seguir em frente - talvez a única mensagem de positividade da obra - é o conforto que encontra naqueles que padecem situação semelhante. Uma vez unidos, os descartados pelo sistema têm um pouco mais de voz para reivindicar a sua própria humanidade.