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Mostrando postagens de junho, 2018

Abril e o mundo extraordinário (filme de 2015)

"Abril e o mundo extraordinário" é uma animação que revê o conceito de distopia como uma alegoria de um futuro possível - e desastroso. Ambientado no começo do século XX, o longa traz elementos do gênero distópico para reconstruir o passado, no qual a maioria dos cientistas desaparece misteriosamente e o progresso tecnológico pouco ou nada avança. Construída com o fino humor francês, uma das graças da obra são as cenas sarcásticas, assim como as imagens que mesclam traços suaves com contextos de violência. Os contrastes ajudam a enriquecer a qualidade do longa, que, apesar de tudo, conta com um enredo relativamente simples. Principalmente ao final, o excesso de cenas de ação tira a sutileza da trama. Ainda assim, com um bom traço e ambientações históricas inovadoras, é um longa que vale o tempo que lhe dedicamos.

A senhoria (Dostoiévski)

Terceira obra publicada por Dostoiévski, "A senhoria" interessa do ponto de vista quase de uma crítica genealógica. Para quem deseja saber as origens do modo de escrita do autor, o livro adianta sim algumas de suas características: o personagem cindido psicologicamente, a presença de uma relação de obsessão, o deslocamento no mundo... Narrativamente, é uma obra bastante confusa, em que pouco fica explicado para o leitor. O final é quase que absolutamente incompreensível e, assim, pouco de nossa empatia é despertado pelo enredo truncado da novela. É possível ler alegoricamente a obra como uma representação da Rússia, incorporando seus diferentes arquétipos. Mesmo essa possibilidade de interpretação mais profunda, entretanto, não consegue destacar o livro dentre a extensa e rica produção dostoievskiana.

Barakah com Barakah (filme de 2016)

O disclaimer no início já avisa: "A pixelização que você verá durante este filme é totalmente normal. Não é uma crítica sobre censura. Repetimos, não é uma crítica sobre censura". Assim como o "Ceci n'est pas une pipe", de Magritte, a representação diz mais do que aparenta (ou mesmo do que proclama não aparentar). Com cenas pixelizadas até para mostrar a barriga de uma atriz, o longa - à primeira vista, uma comédia romântica - faz uma crítica interessante ao regime político na Arábia Saudita. Com uma nota relativamente baixa no IMDB (6,3), a obra não parece ter agradado aos sauditas, como é possível observar nos próprios comentários no site. E não é de se estranhar: se a narrativa peca em algum ponto, é justamente pela idealização do Ocidente.  A liberdade de expressão é defendida por um viés modalizado por certa exaltação do poder de consumo (leia-se poder estadunidense). Contudo, o discurso de resistência e de crítica à censura saudita é bem construído e n

História da menina perdida (Elena Ferrante)

O fim da saga de Lina e Lenu, tetralogia da escritora italiana Elena Ferrante, consegue coroar a história das duas amigas que protagonizam a história. Entre bons e maus momentos (tanto na relação das personagens quanto na construção narrativa), o romance finaliza com um saldo bastante positivo - com o que talvez seja o melhor livro da série. Apenas em "História da menina perdida" conhecemos, de fato, a narradora já adulta e menos influenciada por sua amiga/encosto/karma. A própria Lenu tem consciência da necessidade desse abandono para que realmente saiba como contar a história de ambas. Assim, vemos o seu amadurecimento e o longo caminho que faz para, enfim, desapegar-se. Não é apenas de um único abandono que se constrói o último volume; aliás, a palavra poderia ser definidora de tudo o que rege essencialmente o seu desenrolar. Enquanto nos primeiros livros predominava a violência, o desconforto, a passionalidade, nesta última parte o elemento-chave é o afastamento, a de

Como funcionam quase todas as coisas (filme de 2015)

Na literatura, Anton Tchekhov foi um dos mais icônicos autores de enredos em que nada acontece. Ao contrário dos contos estruturados em início, clímax e desfecho, o escritor russo aposta na quebra de ritmo em grande parte de suas narrativas. Assim, o que fica em evidência não é o acontecimento, mas a vida em si. "Como funcionam quase todas as coisas", como um típico road movie, usa o pretexto da estrada para traçar reflexões sobre o ser e estar no mundo. Celina, a protagonista, é uma vendedora itinerante de enciclopédias, sem raízes em um lugar definido - assim como também é desprovida de laços interpessoais. A estrutura da obra, que usa o recurso das entradas de verbetes para construir o enredo, é bastante interessante. Ainda que seja um filme com poucos acontecimentos, seu caráter um tanto fragmentário ajuda a tornar a narrativa menos cansativa para o espectador. É uma obra que exige atenção e paciência - como qualquer boa estrada.

A ditadura perfeita (filme de 2014)

Gabriel García Márquez, escritor colombiano, recusava o título de ícone do Realismo Mágico; para ele, suas obras eram a pura realidade. E para nós, latino-americanos, não é difícil entender o porquê dessa percepção: vivemos constantemente em situações-limite, habitantes de países conduzidos por bárbaros e corrompidos, imersos em um cotidiano de inverossimilhanças. O excelente filme "A ditadura perfeita" já inicia com um questionamento muito parecido ao de Gabo: "Nesta história todos os nomes são fictícios; os fatos, suspeitamente verdadeiros. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência".  Retrato da política mexicana, a obra parece hiperbólica ao princípio - mas essa impressão pouco dura. Aos poucos, vamos reconhecendo muitas das tramoias e jogos de marketing como extremamente possíveis (quando não banais na nossa cultura de corrupção). Assim, o que começa com o exagero da comédia termina com a reflexão da tragédia - só que aqui não há catarse pa

The Underground Railroad (Colson Whitehead)

Uma das grandes características do realismo mágico vai além do uso de elementos fantásticos inseridos no cotidiano - engloba a linguagem, que se molda para ajudar na criação de um universo de possibilidades (e estranhamentos) para o leitor. Gabriel García Márquez, um dos escritores mais bem-sucedidos no gênero, não hesitava em negá-lo: "é só realismo. A realidade que é mágica. Não invento nada. Não há uma linha nos meus livros que não seja realidade. Não tenho imaginação". Qualquer gênero literário não pode ser pensado apenas em termos estruturais, desprovido de linguagem. No entanto, isso é o que ocorre com "The Underground Railroad": com um narrador extremamente pobre e frases muito mal elaboradas, sua tentativa de realismo mágico descamba no inverossímil. O que começa como ficção histórica vira ficção científica, dramalhão, narrativa de aventura - e não consegue ser um bom livro em nenhuma dessas opções. Com cara de best-seller , a narrativa até que flui (afi

Margarita com um canudo (filme de 2014)

Filmes indianos usualmente são conhecidos não apenas pelas cores vibrantes, enredos plurais e danças coreografadas, mas também por evitar alguns temas e comportamentos tabus na sua sociedade. Assim, por mais que as cenas da mocinha de sári grudado ao corpo, dançando na chuva, sejam recorrentes, a sensualidade é explorada com muitas restrições. Poucos são os filmes que exibem cenas de beijos ardentes - e mais raros ainda os que as extrapolam. "Margarita com canudo" é uma obra questionadora não apenas em relação aos padrões estabelecidos pela Índia, mas também no que diz respeito a todo o cinema ocidental. Afinal, trabalhar a sexualidade dos deficientes físicos (com sérios problemas de articulação motora - e não apenas dos grupos cego e surdo) é sempre uma abordagem chocante - ainda que tão necessária. Longe de ser um grande filme, a obra atende ao propósito de desmitificar a vivência do deficiente. Seu maior pecado é o de utilizar atrizes que não pertencem a esse grupo soc

A arte da felicidade (filme de 2013)

Quem já assistiu "Waking Life" vai reconhecer um grande espelhamento nessa obra italiana. Não que se trate de um enredo plasmado no filme estadunidense - mesmo porque as categorias usuais de como se contar uma história não se mantém aqui.  O que ocorre é uma grande influência estrutural: além do fato de ambos os filmes serem animações, eles são sequências de diálogos filosóficos. Não é à toa, portanto, que os dois longas tenham títulos tão abrangentes e sugestivos.  Inspirado também na obra homônima de Dalai Lama, "A arte da felicidade" trabalha alguns conceitos do budismo em contraposição à agitada vida moderna. A ambientação das cenas é a Nápoles dos anos 1980, na qual o contraste entre a pobreza e os excessos é bastante evidente. É um filme com muitos pontos interessantes, mas que deve ser degustado com calma - afinal, seu objetivo é justamente desacelerar.

The Chorus - a voz do coração (2004)

Com um mote bastante clichê - o do professor desempregado que volta para a sala de aula e redescobre sua vocação -, "The Chorus" ainda assim consegue convencer por atuações cativantes e um enredo envolvente. Não há muitos elementos de surpresa no filme. Ainda assim, o clima nostálgico de infância (sem perder o foco de críticas aos comportamentos dos adultos) faz lembrar de obras como "Matilda" ou "Os meninos da rua Paulo". Ou seja, vemos protagonistas sobrevivendo em meio às adversidades e procurando formas de superar a própria miséria - ainda que nem sempre sejam bem-sucedidos. As cenas de coral, que dão um tom de musical à obra, ajudam a tornar o enredo ainda mais leve. Ademais, ainda que clichê, a história de bons professores sempre pode ser inspiradora.

Veronica Guerin - o custo da coragem (2003)

O discurso sobre a importância da representatividade ganhou força muito recentemente; assim, um filme de mais de 15 anos que destaca o vanguardismo de uma mulher merece o devido reconhecimento. Apesar de falhas pontuais, a história narrada em "Veronica Guerin" é algo entre aterrador e inspirador. Fundamentado em uma história real, o longa expõe a biografia de uma jornalista irlandesa que enfrentou o submundo das drogas e do crime. Com o fim de expor a facilidade de acesso a entorpecentes, ela fez entrevistas arriscadas e tornou-se alvo de traficantes perigosos. O fim (com o qual o espectador toma contato desde as primeiras cenas, a partir das quais o enredo é contado retrospectivamente) é a morte da jornalista, o que incita à revisão de leis antidrogas. Ainda que haja um certo clichê na narrativa de um mártir, nem assim esses ícones se tornam desnecessários no caminhar da humanidade.

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

O duplo (filme de 2013)

Inspirado na obra homônima de Dostoiévski, o filme ambienta-se no século XX e permite-se o uso de licenças poéticas diversas, sem perder a aura atormentada tão característica do russo. Com atuações convincentes, o longa faz uma interessante releitura de uma das obras mais icônicas do autor. Jesse Eisenberg consegue replicar o desconforto do protagonista dostoievskiano, ainda que não seja tão convincente ao interpretar o papel do duplo "moderninho". Para reforçar o aspecto mordaz da narrativa, a filmagem sombria e caricatural (como em "Amélie Poulain) contribui com força. O interessante da produção é como consegue trazer o conteúdo para a forma; nos detalhes da filmagem e mesmo na ambígua possibilidade de interpretação (entre o humor e a tragédia), tudo na obra gira em torno no duplo - inclusive seu desfecho, com um fantástico final aberto.

Introducción a la literatura norteamericana (Jorge Luis Borges & Esther Zemborain)

A obra, bastante curta, é um gostoso passeio pela biblioteca labiríntica de Jorge Luis Borges. O autor nos apresenta a história da literatura estadunidense por meio da biografia de seus escritores preferidos; assim, o livro é um interessante compilado de curiosidades literárias. Por serem textos bastante breves sobre cada autor, o livro deve agradar mais o público que já conhece minimamente algo sobre a literatura do país (caso contrário, pode soar uma listagem enfadonha). Também é preciso ter em conta que, escrito nos anos 1960, a obra não contempla nenhuma representatividade (além de ter um ou dois implícitos de cunho um tanto racista). 

A história não contada dos Estados Unidos (Oliver Stone & Peter Kuznick)

Cineasta bastante premiado, a proposta de Oliver Stone ao arriscar-se em uma área que não lhe é própria (escrever um livro sobre a história do seu país) era oferecer a seu filho uma versão mais apurada dos fatos. Afinal, se as aulas de História que o pai teve repetem-se, sem novidades ou revisionismos, para o filho, é sinal de que algo não vai bem. Bastante ilustrado e com apoio de diversos textos, o livro de Stone é fluido - sem o tom entediante que às vezes caracteriza a área. Aqui, a historicidade é tratada como um organismo vivo, mutante.  Tendo lutado na Guerra do Vietnã, o autor sabe que os pretextos bélicos são sempre muito frágeis. Assim, aponta motivos mais verossímeis para diversos conflitos que marcaram a história do país (muito mais ligados a dinheiro do que a um desejo de "salvar" outras nações).  O ponto fraco da obra é a gentileza ao tratar de alguns políticos com os quais o autor tem mais afinidade, tais como Kennedy e Roosevelt, o que acaba por apagar f

Oh My God! (filme de 2012)

Uma das características mais marcantes da pluralidade cultural da Índia é a convivência de diversas religiões, dentre as quais se destacam o hinduísmo, o budismo, o cristianismo, o sikhismo. Com quase 70% de adeptos, a religião hindu não torna o panorama mais simples - afinal, são milhares os deuses que a configuram enquanto crença. OMG! propõe um questionamento simples, porém muito assertivo nesse caldeirão de diferentes fés: onde acaba a religião e começa o abuso de poder? Questionando autoridades e usos, não é de se estranhar a polêmica que a obra causou (tendo sido, inclusive, banida dos Emirados Árabes). Contudo, ao contrário de PK (filme com a mesma temática - https://cineeleituras.blogspot.com/2017/08/pk-filme-de-2014.html), há um fundo moralista que acaba obscurecendo o questionamento inicial. Ao renegar os ateístas, o filme mostra-se menos tolerante do que fazia crer. É uma comédia interessante e com boas alfinetadas, mas que perde-se ao buscar oferecer soluções falsamente

Big Eyes (filme de 2014)

Com um mote biográfico, o filme se propõe a contar a história de Margaret Keane, uma pintora estadunidense que viveu um caso muito particular de plágio e apropriação intelectual. Enquanto ela produzia seu trabalho, seu marido era o que levava a fama, respondia a entrevistas e controlava o dinheiro resultante da venda dos seus quadros. Dirigido por Tim Burton, o que é interessante no longa é como as pinturas de Keane dialogam com o traço já clássico do cineasta. Assim, o tom meio sombrio, meio fantasioso da narrativa combinam bem com a produção de ambos os artistas - a protagonista e o diretor. Ainda que seja uma história cativante, o fato é que a trama acaba pendendo para um certo tom moralista (principalmente depois que Keane junta-se às Testemunhas de Jeová). Para fazer um filme de cunho verdadeiramente feminista, ainda há que se ir além do maniqueísmo.

Vida e proezas de Aléxis Zorbás (N. Kazantzákis) + filme de 1964

A poética de Nikos Kazantzákis traz um apreço pelo momento bastante semelhante ao que encontramos em poetas neoclássicos ou na dupla de heterônimos portugueses Ricardo Reis/Alberto Caeiro. O prazer de vivenciar, com o olhar de quem vê o mundo pela primeira vez, é o que nos conduz por uma narrativa envolvente. Escrito no início do século passado, é inegável a misoginia presente na obra. Contudo, trata-se de um livro tão bem escrito que nem sequer as cenas de deploração feminina (ou mesmo feminicídio) conseguem nos fazer desprezar a escrita do grego. É como se, abstendo-se de propor julgamentos, o autor fizesse um convite a nos juntarmos à ciranda da vida em sua roda inexorável. Não há meios de sair em meio à dança; assim, observamos e acompanhamos o ritmo. O filme dos anos 1960, ainda que apresente algumas mudanças contextuais (introduz o narrador como um estrangeiro, ao contrário do romance), é bastante fiel  ao original. E, mesmo sem trazer a reprodução de todos os belos diálogo

Sweat (Lynn Nottage)

Considerada a primeira obra a abordar a Era Trump (ainda que escrita em 2015), a peça da dramaturga Lynn Nottage é, em certo sentido, visionária. Ela antecipa muitos dos problemas que regem a política atual dos Estados Unidos, país no qual o número de desvalidos e abandonados pelo poder cresce a cada dia. O enredo, ambientado em um bar, oscila entre idas e vindas no tempo. Assim, acompanhamos desde o momento de fortuna dos personagens, em que todos se divertem e fazem planos, até a derrocada final. O que a trama torna bastante visível aos olhos do leitor/espectador é quanto a fronteira entre a classe média e a pobreza extrema é frágil. A ausência de políticas de incentivo pode ser o suficiente para aniquilar subitamente uma cidade próspera. Com diálogos bastante ácidos, a peça não tem como objetivo construir uma poética elaborada ou revolucionar o modo de apresentar o enredo no palco. Retrato de tempos conturbados, ela restringe-se a apresentar um panorama cruel e atual do mundo qu

Capitalismo, uma história de amor (filme de 2009)

Grande documentarista, Michael Moore distingue-se não só pela irreverência, mas também pelo didatismo. Ao lidar com exemplos brutais do cotidiano, ele revela o quanto a nossa realidade está contaminada pela violência das instituições. Nesta sua produção de 2009, Moore mostra as falhas ideológicas do "Estado mínimo" estadunidense. Enquanto direitos básicos são suprimidos em nome da concorrência e do livre mercado, o governo financia bancos e grandes empresas que têm rombos bilionários. Assim, em busca de uma não intervenção, o Estado abandona as parcelas mais vulneráveis da população enquanto preocupa-se, por outro lado, a ser extremamente caridoso com as corporações de peso. Com um recorte incisivo, o filme traz à luz maracutaias empresariais que mais parecem exemplos de algum realismo mágico perverso - como o fato de alguns empregadores serem os beneficiários dos seguros de vida de seus funcionários. No entanto, a guinada final da obra traz uma luz - ainda que tênue - in