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Florbela (filme de 2012)

Florbela Espanca é uma das minhas poetas preferidas - autora do começo do século XX, é dona de uma poética provocante (ainda mais se pensarmos o que significava ser mulher e escritora nessa época). Um filme sobre a escritora seria uma homenagem mais que merecida - no entanto, há tempos não via algo tão ruim nas telas. Como diria nosso poeta Bandeira, é a vida que poderia ter sido - e não foi. Tudo o que Florbela representou em vida foi estragado, após a sua morte, nesta obra pífia.

Feminismo

O amor dum homem? - Terra tão pisada! 
Gota de chuva ao vento baloiçada... 
Um homem? - Quando eu sonho o amor dum deus!... 

Como pode ser visto nos versos acima, Florbela, apesar dos muitos versos românticos escritos, sabe questionar o amor platônico como ninguém. Sua coragem, zombaria em relação ao sexo oposto é interpretado, no filme, por meio de uma personagem rasa. Feminismo é superficialmente visto como lesbianismo, adultério e amigos intelectuais boêmios. O foco da obra é o que a poetisa faz com seu corpo, e não com a sua mente.

Fotografia

Passam no teu olhar nobres cortejos, 
Frotas, pendões ao vento sobranceiros, 
Lindos versos de antigos romanceiros, 

Céus do Oriente, em brasa, como beijos,
[...]
E ao sentir-se tão grande, ao ver-te assim, 
Amor, julgo trazer dentro de mim 

Um pedaço da terra portuguesa! 

Florbela sabia criar imagens poéticas quase fotográficas. Ao ler os versos acima, é difícil não imaginar cenas de Portugal ao longo dos tempos. No filme, nada desta poética do olhar foi aproveitada - a fotografia é feia e, quando tenta ser bonita, é tosca. O diretor se arrisca a criar cenas supostamente metafóricas, mas que se baseiam em lógicas óbvias. Insulta o raciocínio do espectador.

Eu sou a que no mundo anda perdida, 
Eu sou a que na vida não tem norte, 
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte 
Sou a crucificada ... a dolorida ... 

Sombra de névoa ténue e esvaecida, 
E que o destino amargo, triste e forte, 
Impele brutalmente para a morte! 
Alma de luto sempre incompreendida! ... 

Sou aquela que passa e ninguém vê ... 
Sou a que chamam triste sem o ser ... 
Sou a que chora sem saber porquê ... 

Sou talvez a visão que Alguém sonhou, 
Alguém que veio ao mundo pra me ver 
E que nunca na vida me encontrou! 

Termino esta crítica com um dos meus poemas preferidos da autora, que traz um aspecto indispensável a qualquer obra que se faça sobre a sua vida - o drama. No entanto, não o drama apoiado em especulações biográficas, e sim uma tensão que se construa em torno do seu ofício de escritora. Afinal, se Florbela não pode ser separada de sua poesia.



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