Pular para o conteúdo principal

Mrs. Dalloway (Virginia Woolf) e A última festa (filme de 1997)

Nunca tive problemas para ler obras com fluxo de consciência quando era adolescente - sempre devorei o que encontrava de Clarice Lispector na biblioteca, por exemplo. No entanto, depois de um pouco mais adulta creio ou ter me deparado com obras mais difíceis ou ter adquirido certa resistência com essa onisciência no seu estado mais puro.




Senti muita dificuldade na leitura de "Os cadernos de Malte Laurids Bridge", de Rilke, e acreditava ser uma má escolha de autor. Entretanto, com Mrs. Dalloway enfrentei novamente o problema da leitura truncada (ainda que em escala mais amena): como uma bola de ping-pong, quicamos de dentro da cabeça de um personagem para a de outro, sem ambientação ou um contexto mínimo do que se passa. Contudo, reconheço a validade da obra - e, em alguns trechos, minha identificação com os raciocínios dos personagens foi intensa. 



O excesso de vozes causa um distanciamento do leitor, para que este possa observar os discursos contraditórios, as hipocrisias e descrições irônicas da classe média/alta burguesa do início do século XX. Se, por um lado, nossa análise social fica mais refinada, por outro gera a impossibilidade de envolvimento afetivo com qualquer um dos personagens. No meu caso, por exemplo, o protagonista favorito (dessa narrativa sem personagem principal, apesar do título), foi Septimus, que, talvez por estar fora de si para ter pensamentos coerentes, é o único que pode ser visto pelo leitor em seu estado mais sincero.



Ainda que Septimus esteja melhor descrito na obra, é impossível não afeiçoar-se ainda mais a ele pela interpretação que lhe é dada em "A última festa", filme de 1997 sobre o romance. No caso deste personagem, livro e cinema se complementam com louvor.



No restante, ainda que seja bastante fiel à obra, o longa-metragem tem um caráter pouco inovador, muito semelhante ao dos filmes produzidos sobre obras românticas. Assim, a ideia do fluxo de consciência aparece em um ou outro pensamento dito em voz alta, mas sem chegar nem perto da estrutura original do romance.



Outro fator que tira a qualidade do filme é a escolha da atriz para interpretar a Mrs. Dalloway mais velha. Não que se trate de uma profissional sem expressão - pelo contrário, aqui falamos de uma atriz com uma única expressão (cara de abobalhada) para toda e qualquer situação. O semblante de surpresa é uma constante no rosto da intérprete, não importa se o contexto é de guerra ou de amor. 



Livro difícil, filme um tanto simplista, mas ambos são recomendáveis para conhecer mais da obra de uma das poucas escritoras internacionalmente reconhecidas: Virginia Woolf.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Armandinho 1, 2 e 3 (Alexandre Beck)

O personagem de cabelo azul já ganhou apelidos que o aproximam dos famosos Calvin e Mafalda. No entanto, o toque brasileiro é que faz a diferença e aproxima Armandinho de seus leitores. O garotinho, que não gosta muito da escola, mostra que a sabedoria vai muito além dos bancos da sala de aula. Desde questões políticas específicas - do Brasil ou de Santa Catarina - até piadas simples sobre assuntos cotidianos, a força das suas tirinhas reside também na versatilidade. O ponto de vista infantil nos serve de guia nesses quadrinhos, nos quais os adultos aparecem sempre retratados sob o viés da criança. Para comprovar esse fato, basta observar o traço: assim como na clássica animação dos Muppets, apenas as pernas dos personagens mais velhos são desenhadas. Se a semelhança com Mafalda está no aspecto irreverente (e nos cabelos que são marca registrada), com Calvin o parentesco vai além: em muitas das tirinhas, Armandinho aparece com seu bicho de estimação (um sapo que, inclusi...

Desolación (Gabriela Mistral)

Livro de estreia da poetisa Gabriela Mistral (que viria a ser a primeira latina a ganhar o prêmio Nobel) "Desolación" anuncia a que vem pelo título: é uma obra desoladora. É tamanha a falta de perspectiva que, ao final, há um posfácio curto da autora em que ela diz: "Deus me perdoe este livro amargo - e aqueles que sentem que a vida é doce, que me perdoem também". Com muitos elementos autobiográficos (tão típicos do gênero), há o reflexo, nos poemas, das muitas turbulências que a poeta enfrentou em seus anos de juventude. Apaixonada por um homem comprometido, viu o fim abrupto deste relacionamento quando seu par suicidou-se. Católica com ardor, enfrenta dilemas constantes entre suas crenças religiosas e as muitas desgraças que a vida lhe impõe. Ademais, escritora com sangue indígena, é vítima de preconceito tanto por sua cor quanto por sua condição de mulher. A obra é dividida em quatro partes: vida, dolor, escuela e naturaleza. As duas primeiras refletem m...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...