Pular para o conteúdo principal

Os flagelados do vento leste (Manuel Lopes)

Quando se começa a leitura dessa obra, é difícil não traçar comparações com Vidas Secas, de Graciliano Ramos - ambos os livros trazem em comum as temáticas da seca, da fome, do homem animalizado, da injustiça social. Manuel Lopes, cabo-verdiano, não nega a influência do escritor brasileiro; no entanto, sua obra vai muito além da inspiração graciliana, e compõe um cenário intenso e único.



Ao contrário de Vidas Secas, em que os protagonistas animalizados não conseguem captar nossa empatia, os flagelados de Lopes, apesar de seus problemas de comunicação e de certa brutalidade, nos cativam de forma profunda. Assim, torna-se muito mais triste ver suas esperanças desmanchadas, sua fome absurda, seus problemas sem solução.



O livro se inicia trazendo cenas alegres, com a chegada de um temporal intenso, que traz esperança a todos os viventes da região retratada da ilha. Ao ver o modo como eles lidam com a chuva (que também traz estragos), sempre perseverantes, é desolador assistir ao lento abandono desses homens, pela natureza e pela justiça.



Cada novo capítulo se abre a um panorama ainda mais desolador, cenas de cortar o coração do mais insensível leitor. O único respiro no desenrolar da trama é o breve intervalo amoroso entre Leandro e a moça encontrada por ele a morrer de fome na beira da estrada - e é interessante observar que um dos personagens que mais nos comovem é ladrão e assassino.



É uma obra magistral, que nos leva a uma ampla reflexão sobre as consequências da injustiça social, e nos faz chorar por toda a humanidade.







Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h...

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se ...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...