Pular para o conteúdo principal

Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (Fernando Braga da Costa)

A experiência levada a cabo pelo estudante de psicologia Fernando Braga da Costa vira e mexe volta à tona, como um exemplo de vida, humildade, solidariedade - sentimentos muito distantes dos que os que nos atingem, de fato,  com a leitura do relato do seu trabalho.

Durante quase 1 década, o autor da pesquisa trabalhou de perto com os garis da Universidade de São Paulo, observando e vivenciando o seu cotidiano. Assim, entre vassouras, lixões e obras em construção, foi erigindo uma relação de confiança entre diferentes. Em nenhum momento do livro essa distinção de classe social se apaga; afinal, não levá-la em consideração seria simplesmente travestir-se de gari (como um certo político engomadinho), levando a uma parcial ridicularização da profissão.

Escrita quase a quatro mãos, a tese do mestrando em psicologia não só dá voz aos garis, mas também a seu professor orientador. Dessa forma, o estudante delimita as falas próprias e a do docente, ao invés de elaborar um texto que buscasse unicamente o aval do examinador. O processo dialógico é um dos muitos pontos positivos na obra, e que a torna quase literária em alguns momentos.

Ainda que corresponda ao gênero da tese de dissertação, seu autor brinca com a linguagem a fim de remoer e repisar os relatos de humilhação social com que trabalha. Assim, a mesma fala de um gari pode aparecer repetida 3, 4 vezes em um intervalo de poucos parágrafos - o que amplia a voz de seu emissor, tão frequentemente apagada em nossa sociedade.

Leitura instigante, provocadora, profunda, deveria ser - no mínimo - obra obrigatória em todos os vestibulares da Fuvest. Afinal, aquele que quer ocupar um espaço público deve saber acolher e respeitar todos que dele dependem.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h...

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se ...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...