Minha iniciação com a literatura fantástica de Gabo foi há quase duas décadas atrás, com Cem anos de solidão – que talvez tenha resistido a todo esse tempo como meu livro favorito. Ao reler O amor nos tempos do cólera (e agora em espanhol), tive de lidar com a incerteza se a obra ainda funcionaria para mim, colocando à prova o escritor de que tanto gostei na minha adolescência.
É claro que um escritor do século XX não passa incólume aos julgamentos de nosso tempo; no entanto, uma vez que se trata de um autor que já faleceu, não podemos mais cancelá-lo; o que nos resta é repensar sua literatura e saber ler, com viés crítico, os preconceitos que carrega.
Em alguns trechos, a releitura foi dolorida. Há cenas de pedofilia e de estupro que vão além de uma pressuposta imparcialidade do narrador, com uma naturalização obscena. No entanto, o livro é um retrato de todas as formas de amor (e da cólera que ele carrega). Nesse contexto, passagens injustificáveis são também um registro das formas injustificáveis que se travestem de bem-querer.
Fora esse estranhamento, a releitura foi instigante. A linguagem de Gabo é potente, poética, encantadora. A ambientação em cidades do interior é um convite para o leitor resgatar suas raízes e repensar quais amores originaram sua ancestralidade.
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