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O nome da rosa - o livro versus o filme

Quando assisti ao filme O nome da rosa, há muitos anos atrás, fiquei impressionada com a trama e instigada a ler o livro, tarefa que só cumpri agora. No entanto, ainda que tenha sido minha inspiração para a leitura, ao reassistir a obra cinematográfica fiquei decepcionada. A máxima de que o filme sempre perde para o livro, ao menos aqui, é muito verdadeira.

A leitura é uma experiência que nos faz mergulhar no contexto da Idade Média. A primeira parte da obra é bastante pesada, com todo o contexto histórico e filosófico da trama, além de muitos trechos em latim (e não traduzidos). No entanto, ao enfrentarmos esse obstáculo a leitura se torna bastante prazerosa, com desafios de lógica muito interessantes.




O entendimento do livro passa longe de ser completo, pois Umberto Eco não é um facilitador. O autor nos desafia com sua inteligência e seu conhecimento sobre as características da sociedade do período. Assim como Adso e Guilherme têm um desafio relacionado a um livro, o leitor de O nome da rosa também o tem.

Já no filme, desde o princípio vemos as grandes metáforas e silogismos de Umberto Eco reduzidos a nada. Em vez de reproduzir a cena em que Guilherme demonstra seu raciocínio lógico a partir das pegadas de um cavalo, a obra inicia com o monge usando sua lógica para encontrar o banheiro.

A paixonite de Adso é exacerbada no filme, com um romanticismo que não cabe na história (literalmente). A biblioteca, que seria um dos elementos principais do filme, mal e mal aparece. E, por fim, o raciocínio de Guilherme é revelado antes do desfecho, ao contrário do livro. Na obra literária, o final alcança uma amplitude que não é atingida pela versão nas telinhas. 

Já que o filme trata de livros, nada mais natural de que o livro valha tão mais a pena.



Trechos:
O que é o amor? Não existe nada no mundo, nem homem, nem diabo, nem qualquer coisa, que eu considere tão suspeito como o amor, pois este penetra mais a alma que outra coisa qualquer. Não há nada que ocupe tanto e amarre o coração como o amor.


Frequentemente os livros falam de outros livros. Frequentemente um livro inócuo é como uma semente, que florescerá num livro perigoso ou ao contrário, é o fruto doce de uma raiz amarga. 
"É verdade", disse admirado. Até então pensara que todo livro falasse das coisas, humanas ou divinas, que estão fora dos livros. Percebia agora que não raro os livros falam de livros,  ou seja, é como se falassem entre si.

À luz dessa reflexão, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era então o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminho e pergaminho, uma coisa viva, um receptáculo de forças não domáveis por uma mente humana, tesouro de segredos emanados de muitas mentes, e sobrevividos à morte daqueles que os produziram, ou os tinham utilizado.

Os livros não são feitos para acreditarmos neles, mas para serem submetidos a investigações. Diante de um livro não devemos nos perguntar o que diz mas o que quer dizer [...]



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