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Teoria geral do esquecimento (José Eduardo Agualusa)

Um dos capítulos do livro diz que um homem com uma boa história para contar é quase um rei. Um viva então à majestade de José Eduardo Agualusa, autor de tantas narrativas vigorosas, com raízes fortes e profundas como o tronco do baobá. Sua literatura não se prende à superfície e nem esconde sua africanidade. No entanto, trata-se também de um daqueles poucos autores que conseguem ser, simultaneamente, regionais e universais.

Talvez essa última característica se deva à pungente lusofonia do escritor. Vivendo entre Brasil, Portugal e Angola, Agua-Lusa é um autor que se desloca no oceano e nos mares que separam as diversas facetas do português. Ainda que sua temática seja predominantemente africana, as intertextualidades riquíssimas controem pontes - necessárias - entre as várias línguas portuguesas.

Teoria geral do esquecimento é uma obra quase prima. O enredo central, sobre uma mulher que se trancafia em um apartamento por anos (isolada dos outros, mas voyeur da vida do lado de fora) é excepcional. Algumas das cenas mais marcantes que já li estão neste livro. A situação extrema de solidão, a fome de comida e de carinho, a violência que pulsa a cada momento gera descrições arrebatadoras. 

Ainda que entenda a dificuldade de centrar toda a narrativa em uma personagem que não convive com os demais durante a história, senti que o ingresso dos outros atores da trama diluiu a força do romance. Mesmo assim, é uma das melhores obras do escritor até agora e sua leitura não deve ser negada e nem esquecida.



Trechos:

Tiros, na rua, muito perto. Tiros atraem tiros. Solte-se uma bala no céu e logo dezenas de outras se juntarão a ela. Num país em estado de guerra basta um estampido.
***
Todos podemos, ao longo de uma vida, conhecer várias existências. Eventualmente, desistências. Aliás, o mais habitual. Poucos, contudo, têm a possibilidade de vestir uma outra pele.
***
Parece-me mais fácil ter fé em Deus, não obstante ser algo tão para além da nossa limitadíssima compreensão, do que na infeliz humanidade. [...] Compreendi ao longo dos últimos anos que, para acreditar em Deus, é forçoso confiar na humanidade. Não existe Deus sem humanidade.
***
lavro versos
curtos
como orações
palavras são legiões
de demônios
expulsos

corto pronomes
advérbios

poupo os pulsos. 
***
Magno Moreira Monte acordou, numa manhã sem luz, sentindo-se como um rio que houvesse perdido a foz.
***
Um homem com uma boa história é quase um rei.
***
Morremos sempre de desânimo, ou seja, quando nos falha a alma - então morremos.
***
Vão para o Paraíso as pessoas de quem os outros sentem a falta. O Paraíso é o espaço que ocupamos no coração dos outros.

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