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Livro das perguntas (Pablo Neruda)

Apesar de evitar livros traduzidos do espanhol, a edição primorosa da Cosac&Naify mereceu uma exceção. O trabalho de ilustração dos poemas-perguntas de Neruda é sensacional e potencializa a nossa reflexão sobre os temas abordados pelo escritor chileno. Não se trata de desenhos para "explicar o que autor quis dizer"; pelo contrário, são obras de arte para as quais não há interpretação ou resposta únicas (tal como no texto do livro).




Apesar de brincar com o universo infantil, não há classificação possível para este breve conjunto de poemas-reflexões: muitos dos questionamentos propostos são de difícil racionalização, inclusive para os adultos. E, afinal, como julgar faixas etárias precisas no campo subjetivo da poesia?




Neruda brinca com os grandes temas nas suas indagações: vida, morte, natureza. Pode ser que não haja uma única resposta para todos os questionamentos do poeta. Contudo, a matéria de sua poesia é a dúvida, e não as certezas - portanto, que cada pergunta seja vista como uma reflexão em potencial, e não como um problema a ser resolvido.



Trechos:

Não será nossa vida um túnel
entre duas vagas claridades?

Ou não será uma claridade
Entre dois triângulos escuros?

***

Que farão teus ossos desmembrados,
buscarão outra vez tua forma?

Se fundirá tua destruição
em outra voz e em outra luz?

Teus vermes irão fazer parte
de cachorros ou de mariposas?

***

Sofre mais quem espera sempre
ou quem nunca esperou ninguém?

***

Onde está o menino que eu fui?
Está dentro de mim ou se foi?

Sabe que jamais o quis
e que tampouco me queria?

Por que andamos tanto tempo
crescendo para nos separarmos?

Por que morremos os dois
quando minha infância morreu?

E se minha alma se foi
por que me segue o esqueleto?

***

Um dicionário é um sepulcro
ou favo de mel fechado?

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