Pular para o conteúdo principal

A guerra de Don Emmanuel (Louis de Berniéres)

Um autor do qual nunca tinha ouvido falar e um livro que comprei, de passagem, pela capa bonita e pelo preço barato, só para não ficar sem nada para ler na mochila. E que surpresa boa o acaso me garantiu, com uma das melhores leituras da minha vida.




Apesar de ser um autor inglês, Louis de Bernières morou algum tempo em terras latinas, o que lhe permitiu criar essa obra que é tão identitária, com uma marca latino-americana inquestionável.




A narrativa se passa em um país latino inventado, não nomeado, que reúne todos os problemas que nos são comuns: corrupção, pobreza, violência, fome, ditaduras, governos estúpidos, lideranças políticas desalinhadas, desastres naturais, fauna e flora em exuberância, presença de interesses estrangeiros... A lista é enorme, mas nem por isso o romance é, em algum momento, menos profundo. O que o autor faz é recriar a identidade latina, com todos os seus revezes.




Apesar de ser intitulado com o nome de um de seus personagens (muito carismático, por sinal), o romance não tem um protagonista específico. Cada capítulo nos apresenta alguma figura nova, com a sua história pessoal (quase sempre marcada pela perda e pelo sofrimento), e aos poucos todos vão se encontrando em situações específicas da trama, unidos para vencer as desgraças que vão surgindo em seus caminhos.




É um livro muito difícil de ler, com situações de violência que, apesar de exageradas ao olhar estrangeiro, são muito verossímeis para os que convivem no lado sul do mundo. O autor é extremamente habilidoso - consegue nos apresentar um personagem e matá-lo em um mesmo capítulo, e sentimos como se tivéssemos perdido um grande amigo, apesar das poucas linhas dedicadas a ele. É para fazer qualquer George Martin babar de inveja. Em vez de uma guerra de tronos, prefira uma guerra de pumas em terras latinas, e escolha Louis de Bernières como próxima leitura.

Trecho:

Life is nothing if not a random motion of coincidences and quirks of chance; it never goes as planned or as foretold; frequently one gains happiness from being obliged to follow an unchosen path, or misery from following a chosen one. How often can one refrain from wondering what portentuous events may not have arisen from some trivial circumstance which thereby has acquired a significance far beyond itself?


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Armandinho 1, 2 e 3 (Alexandre Beck)

O personagem de cabelo azul já ganhou apelidos que o aproximam dos famosos Calvin e Mafalda. No entanto, o toque brasileiro é que faz a diferença e aproxima Armandinho de seus leitores. O garotinho, que não gosta muito da escola, mostra que a sabedoria vai muito além dos bancos da sala de aula. Desde questões políticas específicas - do Brasil ou de Santa Catarina - até piadas simples sobre assuntos cotidianos, a força das suas tirinhas reside também na versatilidade. O ponto de vista infantil nos serve de guia nesses quadrinhos, nos quais os adultos aparecem sempre retratados sob o viés da criança. Para comprovar esse fato, basta observar o traço: assim como na clássica animação dos Muppets, apenas as pernas dos personagens mais velhos são desenhadas. Se a semelhança com Mafalda está no aspecto irreverente (e nos cabelos que são marca registrada), com Calvin o parentesco vai além: em muitas das tirinhas, Armandinho aparece com seu bicho de estimação (um sapo que, inclusi...

Desolación (Gabriela Mistral)

Livro de estreia da poetisa Gabriela Mistral (que viria a ser a primeira latina a ganhar o prêmio Nobel) "Desolación" anuncia a que vem pelo título: é uma obra desoladora. É tamanha a falta de perspectiva que, ao final, há um posfácio curto da autora em que ela diz: "Deus me perdoe este livro amargo - e aqueles que sentem que a vida é doce, que me perdoem também". Com muitos elementos autobiográficos (tão típicos do gênero), há o reflexo, nos poemas, das muitas turbulências que a poeta enfrentou em seus anos de juventude. Apaixonada por um homem comprometido, viu o fim abrupto deste relacionamento quando seu par suicidou-se. Católica com ardor, enfrenta dilemas constantes entre suas crenças religiosas e as muitas desgraças que a vida lhe impõe. Ademais, escritora com sangue indígena, é vítima de preconceito tanto por sua cor quanto por sua condição de mulher. A obra é dividida em quatro partes: vida, dolor, escuela e naturaleza. As duas primeiras refletem m...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...