Pular para o conteúdo principal

Cotoco (John van de Ruit)

Muito recomendado em canais literários, Cotoco merece a fama que levou de livro divertido. Ao retratar as confusões de um internato pelo olhar de um menino de 13 anos, o autor consegue criar um tom sarcástico e irônico sem ser excessivamente cruel. No entanto, nem só de bom humor se faz a obra: o foco do romance parece ser narrar as experiências mais marcantes da adolescência: primeiro beijo, namoros, sexo, drogas, festas, pressão escolar, relação com os pais e por aí vai.




Apesar de ser o diário de um garoto e de eu ter a certeza de que iria fazer um grande sucesso ao ser distribuído ao público dessa idade, creio que a classificação da obra se encaixa melhor como Young Adult do que como infantojuvenil. Há temas muito polêmicos que são abordados e que, se lidos acriticamente, podem soar como incentivo a atitudes questionáveis.

O humor bastante politicamente incorreto da obra, se por um lado não parece ainda adequado às crianças, por outro é de fazer gargalhar os mais velhos. Ainda que cause um estranhamento inicial (pela dificuldade de entrar de repente na vida de um menino nessa idade), aos poucos vamos também ameninando-nos e convivendo com as aventuras dos personagens.



O fato de ser escrito por um autor sul-africano aporta questões sociais importantes: a história se situa na época em que Mandela havia acabado de sair da prisão. Cotoco, apesar de ser um bolsista, é aluno de uma escola de elite, majoritariamente branca, que ainda apoia o apartheid. Aos poucos, o protagonista vai se inteirando da situação política de seu país e, além de defender a causa dos negros, passa inclusive a sonhar com ser um guerrilheiro.

Uma relação interessante que pode ser feita é confrontar o desespero 
(fruto da falta de informação) dos pais de Cotoco com os comunas. O modo exagerado como é retratada a família do personagem lembra todo o auê anticomunista que se instalou recentemente no Brasil (propagado por pessoas que mal sabem o que é essa teoria política).



Trechos:

"Deus nos deu o maior presente de todos. Não estou falando do amor, nem da saúde, nem da beleza, tampouco da vida. Estou falando do poder da escolha. É esse o maior presente que Deus nos deu." 

"Não dava para acreditar que aquele velhinho sorridente (Mandela) fosse um terrorista comunista. Agora estou me sentindo culpado por ser branco."


"Falei que tinha ficado feliz com a libertação do Mandela. Após um silêncio de horror, papai falou que eu era um comuna desgraçado e me mandou ir para o quarto dormir. Fiquei me sentindo um grande revolucionário. Acho que um dia ainda vão me chamar de guerrilheiro."


"Tenha boas férias você também, e lembre: em caso de dúvida, continue lendo. Os livros nunca deixam a gente na mão." 

"A vida de todos nós, por mais comum que seja, preencherá uma estante inteira de livros, ou, com sorte, muitos rolos de filme. Não se esqueça de nada sob pena de ser esquecido."

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Armandinho 1, 2 e 3 (Alexandre Beck)

O personagem de cabelo azul já ganhou apelidos que o aproximam dos famosos Calvin e Mafalda. No entanto, o toque brasileiro é que faz a diferença e aproxima Armandinho de seus leitores. O garotinho, que não gosta muito da escola, mostra que a sabedoria vai muito além dos bancos da sala de aula. Desde questões políticas específicas - do Brasil ou de Santa Catarina - até piadas simples sobre assuntos cotidianos, a força das suas tirinhas reside também na versatilidade. O ponto de vista infantil nos serve de guia nesses quadrinhos, nos quais os adultos aparecem sempre retratados sob o viés da criança. Para comprovar esse fato, basta observar o traço: assim como na clássica animação dos Muppets, apenas as pernas dos personagens mais velhos são desenhadas. Se a semelhança com Mafalda está no aspecto irreverente (e nos cabelos que são marca registrada), com Calvin o parentesco vai além: em muitas das tirinhas, Armandinho aparece com seu bicho de estimação (um sapo que, inclusi...

Desolación (Gabriela Mistral)

Livro de estreia da poetisa Gabriela Mistral (que viria a ser a primeira latina a ganhar o prêmio Nobel) "Desolación" anuncia a que vem pelo título: é uma obra desoladora. É tamanha a falta de perspectiva que, ao final, há um posfácio curto da autora em que ela diz: "Deus me perdoe este livro amargo - e aqueles que sentem que a vida é doce, que me perdoem também". Com muitos elementos autobiográficos (tão típicos do gênero), há o reflexo, nos poemas, das muitas turbulências que a poeta enfrentou em seus anos de juventude. Apaixonada por um homem comprometido, viu o fim abrupto deste relacionamento quando seu par suicidou-se. Católica com ardor, enfrenta dilemas constantes entre suas crenças religiosas e as muitas desgraças que a vida lhe impõe. Ademais, escritora com sangue indígena, é vítima de preconceito tanto por sua cor quanto por sua condição de mulher. A obra é dividida em quatro partes: vida, dolor, escuela e naturaleza. As duas primeiras refletem m...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...