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A hora e a vez de Augusto Matraga (filme de 2012)

Muito se discute sobre a pretensa intraduzibilidade de Guimarães Rosa, ainda que algumas edições sejam famosas pelo trabalho de transposição do sertão mineiro a outras línguas e culturas. Se a transferência da palavra escrita para outro idioma já parece tarefa quase impossível, o que dizer da constante tentativa de levar a linguagem de Rosa para as telas do cinema?




Aparentemente, os motivos para não tentar essa transferência são mais fortes: o desconhecimento da época retratada por Guimarães (uma vivência de boiadeiros que já não existe da mesma forma), a linguagem poética ao extremo, os regionalismos marcados, os personagens excêntricos. No entanto, apesar de todas essas dificuldades, são já várias as tentativas de filmar o sertão e suas veredas.

"A hora e a vez de Augusto Matraga", produzido em 2012 por Roberto Santos, não só é a melhor adaptação que já vi de Rosa, como é uma das melhores leituras cinematográficas de autores brasileiros (e feita, igualmente, em terra tupiniquim). Poucos elementos são acrescentados ao texto original e, os que o são, seguem à risca a coerência interna da obra. Assim, entramos em contato com um Guimarães muito puro, sem malabarismos didáticos para forçar seu entendimento. É um filme difícil, a princípio - mas, como na leitura, vai nos conquistando pouco a pouco.

As atuações - inclusive as dos falecidos Chico Anysio e José Wilker - são fantásticas. Talvez haja uma certa plastificação de variantes linguísticas, mas o resultado final é tão bom que dá para relevar. A trilha sonora, talvez levemente clichê, é também emocionante. E, por fim, a fotografia causa um deslumbramento à altura da língua roseana. É tudo lindo, com boniteza e precisão.



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