Pular para o conteúdo principal

As aventuras de Hans Staden (Monteiro Lobato)

Monteiro Lobato era um dos meus autores preferidos da infância, e, aproveitando a coleção quase completa de suas obras comprada a preço de banana nos sebos da vida, decidi dedicar-me à releitura desses livros infantis. No entanto, ainda que previsse um novo olhar sobre as histórias do Sítio do Pica-pau-amarelo, não imaginava que seria um processo tão doloroso.




Tia Nastácia é humilhada a cada momento (principalmente por Emília), o que torna muito difícil continuar sentindo simpatia pelos personagens infantis de Lobato. Confesso que, nas obras em que Nastácia não aparece, sinto um alívio na leitura - mas é temporário.

As aventuras de Hans Staden talvez tenha sido o livro que mais me impressionou na infância - e não é à toa, já que as descrições de canibalismo são para tirar o sono de qualquer criança. Ao relê-la, senti um certo conforto quando percebi que a ausência de tia Nastácia significaria talvez um controle na língua ferina e maldosa de Lobato - mas foi ledo engano. Se não destila seu ódio contra os negros, o autor não poupa, neste livro, os indígenas brasileiros de estereótipos e construções culturais distorcidas.

Há momentos de uma certa leveza - quando Dona Benta, por exemplo, mostra que comer carne humana é tão perverso quanto ingerir a carne de qualquer animal; quando alguns aspectos da cultura indígena são explicados com naturalidade, dentro do universo de suas próprias mitologias. Sempre contraditório, Lobato é mestre em morder e assoprar - ora exalta, ora abomina o indígena brasileiro. Pena que um ou outro momento de defesa não sejam suficientes para esquecer tantos ataques à nossa cultura nativa.







Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h...

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se ...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...