Com reedições frequentes, tradução em mais de 30 línguas, filmes, séries e diversas outras publicações inspiradas nela, a obra de Anne Frank parece ser representativa de uma das figuras mais expressivas do Holocausto judeu durante a Segunda Grande Guerra. Sua dor e morte nos campos de extermínio não deve, de fato, ser banalizada; no entanto, não seria o caso de nos perguntarmos por que, dentre tantos relatos traumáticos de crianças vítimas do conflito, apenas o seu sobreviveu ao tempo?
Como aponta brilhantemente Laurel Holliday na introdução de seu livro - uma coletânea de diários de jovens e crianças escritos no período - Anne Frank não teve a oportunidade de relatar em seus escritos a parte mais cruel da perseguição aos judeus - "she did not experience life in the streets, the ghettos, the concentration camps, as it was lived by millions of children throughout Europe".
Os relatos apresentados por Holliday foram escritos por 23 crianças e jovens, entre 10 e 18 anos, de diferentes nacionalidades. Todos eles têm em comum o fato de serem testemunhas históricas - e muitas vezes, de sentir na própria pele - os terrores mais intensos da guerra. São adolescentes e meninos que passam fome extrema, apanham, assistem impotentes ao assassinato de parentes queridos - e, por fim, são quase invariavelmente exterminados.
Anne Frank não teve tempo ou meios de relatar o pesadelo de Auschwitz - e ainda que sua história deva ser lembrada, o fato de sua relevância apagar a dos demais diários escritos na mesma época não revela um pouco de nossa inconsistência histórica? Por que, dentre tantos relatos - o da criança que viu a irmãzinha ser assassinada, o do menino que teve de abandonar a avó para se salvar, o da garota que era obrigada a recolher os dentes de ouro dos mortos nas câmaras de gás - escolhemos o de escrita mais suave como símbolo da época?
É um livro de revirar o estômago. Há um ou outro relato de jovens que tentam seguir a vida apesar da guerra, mas, no geral, são histórias devastadoras. O questionamento feito por esses garotos, há mais de 70 anos, continuam sem resposta: por que Deus permitiu o Holocausto? O que uma criancinha de 7 anos fez para merecer a morte? Por que os idosos eram eliminados, se tão pouco poder tinham contra o sistema? Por que a religião é mais forte que a empatia?
Uma pena que não haja tradução e nem a correta divulgação desses diários - mas acredito que seja intencional. Afinal, em tempos tão sombrios como os que vivemos, essas memórias serão rapidamente apagadas, para que o ódio político possa renascer.
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