Pular para o conteúdo principal

O tempo e o vento (Erico Verissimo)

Durante muito tempo, a crítica literária preciosista me afastou de Erico Verissimo, que, assim como Jorge Amado, é rotulado como autor de best sellers rasos em trabalho linguístico. Se já havia me libertado deste estereótipo em relação ao escritor baiano - afinal, A morte e a morte de Quincas Berro d´Água, assim como tantos outros escritos, provam o contrário - ainda me mantinha reticente em relação ao gaúcho. E ano passado, ao entrar em contato pela primeira vez com a sua obra (pela via dos Caminhos Cruzados), a surpresa foi grande - e deliciosa.

Talvez Erico incomode tanto a engessada crítica por ser um autor prolífico, de grandes vendas e, sobretudo, gostoso de ler. Ainda que seus enredos e sua linguagem sejam aparentemente simples, creio que é nesta aparente falta de recursos que reside seu grande truque de mestre. Personagens como o capitão Rodrigo e Rodrigo Cambará Terra seriam, se reais, pessoas detestáveis - mas fisgam como personagens. A capacidade de cativar o leitor e tragá-lo para dentro da trama, desenvolvendo fortes laços de afeto com os narradores diversos e personagens múltiplos, é uma das características de sua obra - que se destaca na trilogia (em sete tomos) O tempo e o vento.




A proposta inicial do autor foi recontar a história do Brasil de uma maneira mais acessível e viva, trabalho que cumpre genialmente (sempre com o foco para a história dos gaúchos, claro). Por meio da narrativa, todas as guerras, conflitos políticos e tensões sociais, desde o Brasil colonial até o republicano, ficam muito palpáveis, visuais, compreensíveis. Ainda que o autor não se proponha a exercer o trabalho fidedigno de um historiador, a pesquisa historiográfica salta aos olhos, até nos pequenos detalhes do enredo.

O reconto da história brasileira é apenas uma das muitas camadas que compõem a trama. Outra que merece destaque é a espécie de divã que Erico cria em relação à própria vida: os personagens Rodrigo Cambará e Floriano são representações de seu pai e dele mesmo enquanto autor. O expurgo freudiano de neuras e traumas da relação entre pais e filhos vai além do perfil biográfico, contudo: retrata, ao final, a questão universal do conflito de gerações.




As camadas metalinguísticas, por sua vez, antecipam toda  a crítica possível ao romance, revelando um autor que é consciente das falhas de sua obra e que faz questão de expô-las, de trabalhar com sinceridade. Quanto à linguagem, outro ponto forte é o uso de diferentes narradores (e mesmo de diversos suportes, como  trechos de diários, discursos e jornais); toda essa diversidade de recursos talvez explique por que a leitura deste calhamaço de mais de 2000 páginas é tão leve e viciante.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Armandinho 1, 2 e 3 (Alexandre Beck)

O personagem de cabelo azul já ganhou apelidos que o aproximam dos famosos Calvin e Mafalda. No entanto, o toque brasileiro é que faz a diferença e aproxima Armandinho de seus leitores. O garotinho, que não gosta muito da escola, mostra que a sabedoria vai muito além dos bancos da sala de aula. Desde questões políticas específicas - do Brasil ou de Santa Catarina - até piadas simples sobre assuntos cotidianos, a força das suas tirinhas reside também na versatilidade. O ponto de vista infantil nos serve de guia nesses quadrinhos, nos quais os adultos aparecem sempre retratados sob o viés da criança. Para comprovar esse fato, basta observar o traço: assim como na clássica animação dos Muppets, apenas as pernas dos personagens mais velhos são desenhadas. Se a semelhança com Mafalda está no aspecto irreverente (e nos cabelos que são marca registrada), com Calvin o parentesco vai além: em muitas das tirinhas, Armandinho aparece com seu bicho de estimação (um sapo que, inclusi...

Desolación (Gabriela Mistral)

Livro de estreia da poetisa Gabriela Mistral (que viria a ser a primeira latina a ganhar o prêmio Nobel) "Desolación" anuncia a que vem pelo título: é uma obra desoladora. É tamanha a falta de perspectiva que, ao final, há um posfácio curto da autora em que ela diz: "Deus me perdoe este livro amargo - e aqueles que sentem que a vida é doce, que me perdoem também". Com muitos elementos autobiográficos (tão típicos do gênero), há o reflexo, nos poemas, das muitas turbulências que a poeta enfrentou em seus anos de juventude. Apaixonada por um homem comprometido, viu o fim abrupto deste relacionamento quando seu par suicidou-se. Católica com ardor, enfrenta dilemas constantes entre suas crenças religiosas e as muitas desgraças que a vida lhe impõe. Ademais, escritora com sangue indígena, é vítima de preconceito tanto por sua cor quanto por sua condição de mulher. A obra é dividida em quatro partes: vida, dolor, escuela e naturaleza. As duas primeiras refletem m...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...