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Dois irmãos (Milton Hatoum) + Dois irmãos (Fábio Moon e Gabriel Bá)

Dois irmãos é um livro indubitavelmente bem escrito. Com uma tensão constante, que se prolonga das páginas iniciais às finais da narrativa, Hatoum consegue deixar seu leitor em permanente estado de angústia diante dos conflitos de seus personagens tão humanos, tão falhos. Para compensar um pouco desta irremediabilidade da vida, o autor nos brinda com a doçura de seus regionalismos, que nos fazem mergulhar pelos afluentes do Amazonas. Os cheiros, os sons, os sabores do Norte do Brasil se mesclam perfeitamente à narrativa, em uma mistura equilibrada e surpreendente.

Talvez primeiro escritor nortista a ganhar renome na academia e fora dela (com obras adaptadas pela TV Globo, por exemplo), Hatoum nos leva a conhecer um pouco mais desta parte do país - nosso único e diverso país. Sem ater-se à questão amazônica, o autor também explora referências libanesas, relatando um certo oriente que se incorporou ao topo do Brasil.






Dois temas são bastante prementes na narrativa de Milton: a preferência por um dos filhos (com um tom quase tão trágico quanto a escolha de Sofia) e o incesto. Ao contrário de um Lavoura Arcaica, em que as relações sexuais entre parentes são o ápice da narrativa, quase não há indícios da consumação do ato na obra de Milton. A carnalidade, as possibilidades do amor entre parentes são as que mais angustiam o leitor, e que permeiam toda a obra. Ao contrário de uma transa, situada no tempo, com começo, meio e fim, o erotismo pode se prolongar indefinidamente, sem chegar a lugar nenhum. É o que acontece na trama de Dois irmãos.

A HQ dos irmãos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá é, como quase toda adaptação a graphic novel, bastante condensada. No entanto, ainda que um ou outro aspecto do enredo se perca, foi a releitura que me fez gostar mais da obra original. Um pouco mais suave que o enredo ácido de Hatoum, os quadrinhos fazem a seleção das frases mais pungentes do livro, criando um ambiente um pouco mais acolhedor para quem lê - da intensidade se faz a poesia com ainda mais força. Não é uma obra que simplifique ou esconda a tragédia do original; ainda assim, talvez a beleza dos desenhos e o ato de pinçar as frases mais impactantes do livro quebrem um pouco o clima de tensão, tornando a obra de Hatoum mais palatável. Como uma boa adaptação deve ser, é um excelente complemento ao original.


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