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Fugitiva (Alice Munro)

Edgar Allan Poe defendia que o conto é um gênero para ser lido "de uma sentada só" - com um núcleo narrativo breve e intenso, não deveria ser fragmentado em leituras menores, sob o risco de perder seu impacto. Descumpri totalmente os preceitos do autor do Corvo durante meu primeiro contato com a obra de Alice Munro - e não me senti em nada desfalcada.



Livro de reserva na bolsa, os contos de A fugitiva me acompanharam por quase meio ano, em um processo de leitura intervalado e cheio de falhas, lacunas. No entanto, mesmo ao retomar a obra com semanas de afastamento, em meio ao enredo de um conto, conseguia rapidamente me lembrar da trama e acompanhar o desfecho de cada história.

Talvez o fato de incluir os mesmos personagens em vários dos contos ajude a tornar a coletânea deste volume bastante notável, com personagens marcantes que demoram a se desvanecer da mente. Contudo, há algo além - algum elemento não identificado na escrita da canadense torna a incorporação de suas histórias curtas bastante profunda. Há um envolvimento real com os dramas desses protagonistas de tantos enredos.

Aliás, dessas protagonistas. Afinal, as mulheres cheias de dúvidas e pecados que povoam as páginas de A fugitiva são um dos motivos de nos prendermos aos contos. São todas protagonistas desiludidas, despedaçadas. Seja identificação ou compaixão, nos apegamos a elas e torcemos (ainda que ingenuamente) por fugas possíveis.




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