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Neruda (filme de 2016)

Raramente um filme que começa mal - no que concerne ao enredo, atuações, trilha sonora, fotografia - consegue se reinventar antes do final, ao menos segundo minhas percepções enquanto espectadora. O inverso, infelizmente, é bem mais comum: tramas ótimas que descambam em um desenlace mirrado, sem satisfazer a nenhuma expectativa possível.




Talvez Neruda parta do princípio errado, o que dificulta o envolvimento com a história; segundo o diretor, trata-se de uma fantasia em torno a fatos não explicados da vida do poeta. Para mim, que não havia lido nada sobre o longa-metragem (mas que conhecia a autobiografia do escritor chileno), desde o início a trama me pareceu exagerada e inverossímil. Tive de interromper a exibição ao meio para pesquisar pela internet entrevistas com o diretor que justificassem a escolha do enredo do filme - só assim me dispus a vê-lo até o fim.

Surpreendentemente, a caçada do poeta chileno por um agente policial/detetivesco começa a fazer sentido quase no final da história, com um momento de clímax bem idealizado. Desde a revelação dos significados ocultos da perseguição até o desfecho, o longa retoma o fôlego, em todos os aspectos - as atuações ficam mais impactantes, os cenários escolhidos criam uma fotografia sensacional (ainda que cheia de flares e glares) e as pontas soltas finalmente se encaixam. Se não chega a ser um filme ruim, a questão que fica é: como a vida tão cheia de acontecimentos de Neruda já foi tema de duas biografias romanceadas para o cinema e de nenhum filme realmente interessado nos aspectos histórico e político de sua existência? Neruda dá sim mais filmes (e que venham com mais poesia).



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