Pular para o conteúdo principal

O Cortiço (Aluísio Azevedo)

Para o bem ou para o mal, os livros que mais reli na vida são os das listas obrigatórias da Fuvest e da Unicamp - seja como vestibulanda, seja para as aulas que preparo sobre essas obras. E, nesse aspecto, que delícia é ter reencontros (dotada de um pouco mais de maturidade) com grandes clássicos da literatura e ir desvendado, aos poucos, significados que passaram tão despercebidos nas primeiras e juvenis leituras desses enredos.

"O Cortiço" talvez seja, dentre os repetecos clássicos das leituras obrigatórias, o romance que mais cresceu para mim. De um livro chocante por suas cenas de sexo, durante meus primeiros anos de adolescência, à leitura sem emoções para o vestibular, tornou-se, recentemente, uma obra plena em delicadeza e em humor - muito além da crueza analítica e científica do Naturalismo.

Alguns personagens, inicialmente despercebidos, se cravaram fundo na memória: Albino, com sua delicadeza questionadora dos limites dos gêneros sexuais em pleno século XIX; Agostinho, garoto que tem uma das mortes mais trágicas da obra; Rita Baiana, com seu discurso sem hipocrisias, cru, corajoso... Enfim, um leque de caracteres amplo e tocante, pelos quais até o próprio narrador, em um momento ou outro da obra, mostra amor e compadecimento...

Duas intertextualidades recentes foram talvez os turning points do meu juízo sobre "O Cortiço": o primeiro, o filme "Feios, sujos e malvados", me aproximou do Naturalismo por meio do Neorrealismo italiano - cheio de sarcasmo, visualmente impactante, e que mantém, um século depois, as mesmas críticas sociais... O segundo foi a leitura de "Os miseráveis", obra na qual Aluísio visivelmente se inspirou (vide as cenas das barricadas em um e outro romance).

Lido sob o viés de obra para o vestibular, considerado apenas como fruto de seu tempo e representante de uma escola literária, "O cortiço" é uma obra enfadonha e com um discurso chocante. Lido com prazer, é uma obra-prima fenomenal.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Armandinho 1, 2 e 3 (Alexandre Beck)

O personagem de cabelo azul já ganhou apelidos que o aproximam dos famosos Calvin e Mafalda. No entanto, o toque brasileiro é que faz a diferença e aproxima Armandinho de seus leitores. O garotinho, que não gosta muito da escola, mostra que a sabedoria vai muito além dos bancos da sala de aula. Desde questões políticas específicas - do Brasil ou de Santa Catarina - até piadas simples sobre assuntos cotidianos, a força das suas tirinhas reside também na versatilidade. O ponto de vista infantil nos serve de guia nesses quadrinhos, nos quais os adultos aparecem sempre retratados sob o viés da criança. Para comprovar esse fato, basta observar o traço: assim como na clássica animação dos Muppets, apenas as pernas dos personagens mais velhos são desenhadas. Se a semelhança com Mafalda está no aspecto irreverente (e nos cabelos que são marca registrada), com Calvin o parentesco vai além: em muitas das tirinhas, Armandinho aparece com seu bicho de estimação (um sapo que, inclusi...

Desolación (Gabriela Mistral)

Livro de estreia da poetisa Gabriela Mistral (que viria a ser a primeira latina a ganhar o prêmio Nobel) "Desolación" anuncia a que vem pelo título: é uma obra desoladora. É tamanha a falta de perspectiva que, ao final, há um posfácio curto da autora em que ela diz: "Deus me perdoe este livro amargo - e aqueles que sentem que a vida é doce, que me perdoem também". Com muitos elementos autobiográficos (tão típicos do gênero), há o reflexo, nos poemas, das muitas turbulências que a poeta enfrentou em seus anos de juventude. Apaixonada por um homem comprometido, viu o fim abrupto deste relacionamento quando seu par suicidou-se. Católica com ardor, enfrenta dilemas constantes entre suas crenças religiosas e as muitas desgraças que a vida lhe impõe. Ademais, escritora com sangue indígena, é vítima de preconceito tanto por sua cor quanto por sua condição de mulher. A obra é dividida em quatro partes: vida, dolor, escuela e naturaleza. As duas primeiras refletem m...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...