Pular para o conteúdo principal

O conto da aia (Margaret Atwood)

Enquanto a utopia é a etiqueta atribuída para catalogar os mundos sonhados, os panoramas ideais, a distopia age como seu contrário: igualmente possível em uma realidade distante, é marcada pelo signo do negativo, da falta, da opressão. Classificado como romance distópico, "O conto da aia" gera polêmicas - afinal, como a própria autora já afirmou em várias entrevistas, todo o enredo é inspirado em situações que já existem. Se distópico, seu livro tem ao menos um dos pés ancorado fortemente na realidade - e, justamente por isso, sua trama é tenebrosa.

Em um futuro próximo, as fêmeas se tornam inférteis em função do excesso de radioatividade. Nesse contexto de crise (tanto de população quanto da produtividade de alimentos), um estado autoritário assume o poder dos Estados Unidos, sob o pretexto de estar combatendo os terroristas. Depois deste golpe, todas as atrocidades são validadas, e passam a ser a lei, o bastião da moral segundo o texto bíblico. Mais do que um plot, a ideia do romance de Atwood é quase uma profecia, cada vez mais concreta em tempos sombrios.

A má interpretação da Bíblia que fundamenta o estado de exceção de Gilead é um dos reflexos mais claros no espelho entre realidade próxima e distopia. Basta para isso verificar que a primeira tradução da Bíblia em língua portuguesa sairá neste ano, de 2017 (apesar de toda a carolice secular de Portugal). Os textos sagrados não são discutidos nem aqui nem no romance - são restritos a um grupo de estudiosos, que pregam a fé cega, a crença sem provas... assim, de onde estamos para a sociedade retratada pela canadense, será um abismo realmente? Ou apenas um pequeno passo nos separa de um mundo de barbarismos?

A escrita de Atwood é contundente, bem elaborada, com frases complexas que exigem, por vezes, mais de uma releitura. No entanto, como toda boa distopia, tem um ritmo alucinante de mistério e suspense, e a elaboração de um subtexto precioso de resistência.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h...

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se ...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...