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A cidade e as serras (Eça de Queirós)

Durante muito tempo "A cidade e as serras" foi o meu livro menos querido na lista clássica do vestibular - e, por isso, sempre evitava dar aula sobre a obra. No entanto, ao não ter outra saída senão encarar o romance novamente este ano, qual não foi a minha grata surpresa ao me deparar com uma narrativa divertida, irônica e reflexiva. Para dizer em outras palavras: eu me jacintei.

A crítica de Eça aos excessos burgueses não fazia sentido na minha vida no primeiro contato com a obra; agora, mudados os contextos pessoal e histórico, pude assimilar muitas das indiretas do português para o meu próprio estilo de vida.

Jacinto não só é um rico envolto pelo luxo; é (assim como muitos de nós, da era da informação) envolvido por muito mais do que consegue acumular. Sua agenda lotada não lhe deixa tempo para aproveitar cada encontro; possui 70 mil exemplares na biblioteca, sem vontade de ler nenhum; compra quinquilharias tecnológicas que rapidamente deixam de funcionar ou se transformam em sucata.

Em fins do século XIX, Eça já fazia sua demonstração corrosiva sobre a obsolescência programada, a informação em detrimento do saber, a urbanização frágil, a burguesia preocupada apenas com o próprio status. Ainda que seja uma trama desigual (a parte centrada na cidade é muito mais interessante), é um livro surpreendente e mordaz.



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