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Eu falo dos que não falam (Hans Magnus Enzensberger)

Lido por acaso, durante a faculdade, este livro de poesias foi um dos meus preferidos durante a época. Antologia de um poeta quase não traduzido para o português, a obra ainda tem o inconveniente de ser uma edição do antigo Círculo do Livro - ou seja, quase impossível de encontrar por menos de 3 dígitos em sebos.

Presente no catálogo de 2019 da editora Todavia, Enzensberger é um autor que deve mesmo ser resgatado nos tempos atuais. Ainda que só tenha um vislumbre de sua obra, foi o suficiente para criar uma ideia da contemporaneidade da produção.

O autor viveu tanto a Segunda Guerra Mundial quanto a separação das Alemanhas, o que marca uma visão extremamente amargurada e sem esperanças sobre o decorrer da história. Não há suavidade em seus poemas, feitos para causar choque e ironizar a sociedade da qual, sem escape possível, faz parte.

Defesa do lobo contra os cordeiros

Querem que o abutre coma miosótis?
o que exigem do chacal?
do lobo, que mude de pele? Querem
que ele mesmo extraia seus dentes?
O que é que não apreciam
nos comissários políticos e nos papas,
porque olham, feito burros,
o vídeo mentiroso?

Olhem-se no espelho: covardes,
temendo a fadiga da verdade
sem vontade de aprender, entregando
o pensar aos lobos
um anel no nariz como adorno preferido,
nenhuma ilusão burra o bastante, nenhum consolo
barato o suficiente, cada chantagem
ainda é clemente demais para vocês.

Ó cordeiros, irmãs
são as gralhas comparadas a vocês:
vocês se arrancam os olhos uns aos outros.
Fraternidade reina
entre lobos:
andam em alcateias.

Louvados sejam os salteadores: vocês
convidam para o estupro
deitando-se no leito preguiçoso
da obediência. Mesmo gemendo
vocês mentem. Querem
ser devorados. Vocês
não mudam o mundo.


(Tradução de Kurt Scharf e Armindo Trevisan)


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