Pular para o conteúdo principal

As cartas que não chegaram (Mauricio Rosencof)

Nesses tempos em que vivemos - de um ódio tão fácil, falácias com estatuto de dogmas - a leitura de uma obra poderosa, como a de Rosencof, é um lembrete assustador do que acontece com aquele que perde sua humanidade em nome de crenças avassaladoras.

Dois períodos históricos incontornáveis são retratados com maestria no livro - e, infelizmente, mais fundamentados na realidade do que na ficção. As primeiras cartas que nunca chegaram são as da família do pai de Rosencof, morta ou nos guetos da Polônia ou em campos de concentração. Com uma sensibilidade arrebatadora, o autor toma para si a tarefa de escrever missivas ao pai, revelando o destino trágico de seus parentes.

A segunda e a terceira parte da obra ("A carta" e "Dias sem tempo") consistem no relato tardio do filho ao pai. O autor, Mauricio Rosencof, passou 11 anos, 6 meses e alguns dias na solitária durante a ditadura no Uruguai. Companheiro de Mujica, acompanhou seu trágico destino por mais de uma década. Nesse diário escrito após o confinamento, o escritor compartilha com o pai as palavras que nunca pôde lhe dizer.

Algumas das cenas mais impactantes do livro trazem a ideia do não reconhecimento - afinal, como continuar sendo humano após atrocidades tamanhas? Na primeira vez em que a situação ocorre na obra, vemos o pai de Rosencof voltar da guerra (quando os judeus ainda podiam segurar armas) e ser confundido com um pedinte pelo seu próprio irmão. Muitos anos depois, é esse mesmo pai que não reconhece seu filho ao ter a permissão de fazer uma visita na cadeia. E, por fim, ao sair da prisão é o filho que já não reconhece o pai, debilitado em um asilo pelo governo que lhe tirou a casa.

História de uma eterna migração, um eterno não lugar: "As cartas que não chegaram" é uma obra para as quais não há palavras que cheguem. Que bastem. Que tenham algum poder diante de um recorte histórico tão curto e tão potente nas tragédias que carrega.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h...

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se ...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...