Pular para o conteúdo principal

Sagarana (Guimarães Rosa)

Virei leitora de Rosa antes ainda da obrigatoriedade de Sagarana no vestibular (livro que continua na lista, mais de dez anos depois de ter prestado a prova). E, ao contrário de tantas obras lidas na adolescência que se tornaram mais claras para mim com o passar do tempo, os textos roseanos ainda são pequenos mistérios, carregados de possibilidades que ainda não desvendei.

Lembro-me de, aos 16, 17 anos, ter gostado muito do conto "Conversa de bois", um dos últimos do livro. Ainda que pelo seu tom fabulesco e plot twist sensacional continue sendo uma das minhas narrativas preferidas, na penúltima releitura duas outras vieram somar-se à minha lista de idiossincrasias: "Sarapalha" e "A hora e a vez de Augusto Matraga".

"Sarapalha", conto de pouca ação, é extremamente delicado ao lidar com o tema da morte, da solidão e da necessidade de perdoarmos uns aos outros. Para mim, talvez seja o conto mais triste e comovente do conjunto.

"A hora e a vez..." é, como Guimarães próprio definiu, o ápice do livro: uma história bem elaborada, passível de diversas leituras, prenhe de significados. E, como última narrativa da obra, funciona como uma espécie de "final feliz": é uma bela história de perdão e amor ao próximo. 

Em 2019, minha mais recente releitura da obra (feita de modo mais pausado, ruminando cada palavra) trouxe pelo menos dois contos mais para a minha lista de favoritos: a graça e a velocidade que permeiam as histórias de "Duelo" e "Corpo fechado" me conquistaram como até então não haviam feito. Provavelmente, só agora, após um continuado contato com a linguagem de Rosa, esteja pronta a ver suas sutilezas, a encarar com humor o que antes via apenas como desafio. Talvez um dos livros que mais reli na vida, por motivos bastante diferentes, "Sagarana" continua se mostrando uma obra extremamente aberta, propícia a ainda muitas travessias.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h...

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se ...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...