Pular para o conteúdo principal

Bacurau (filme de 2019)

Pouco conheço de cinema brasileiro, mas é difícil não sair da sessão de "Bacurau" sem acreditar que esta é uma produção bastante diferente do que se fazia até então. Talvez o contexto político corrobore essa visão, que pode ser equivocada; no entanto, o fato é que estamos diante de um filme que protesta e cria engajamento.

O diálogo com as tradições literárias do real maravilhoso, do realismo mágico - e mesmo da distopia - é bastante forte na produção. Há uma oscilação entre os limites possíveis da realidade, que se reflete nas escolhas de fotografia e roteiro. Algumas cenas, aparentemente inverossímeis, são explicadas brevemente ao espectador, mas com destreza; assim, ao invés de nos fazer desconfiar da obra, nos faz imergir em um contexto de imprecisões e frágeis verdades.

Com personagens arquetípicos e alegóricos, a narrativa consegue criar múltiplas camadas de significado em um roteiro bastante aberto a interpretações. Outro ponto que me chamou a atenção foi o retrato de um contexto brasileiro mais interiorano, mas sem descambar em estereótipos simplistas.

Do conjunto, só o que me resta de preocupação é o discurso de violência que subjaz à trama. Por mais que a organização da comunidade de Bacurau frente aos opressores seja encantadora, ela ainda é uma ficção - e, transposta para a realidade, não será tão indolor.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Armandinho 1, 2 e 3 (Alexandre Beck)

O personagem de cabelo azul já ganhou apelidos que o aproximam dos famosos Calvin e Mafalda. No entanto, o toque brasileiro é que faz a diferença e aproxima Armandinho de seus leitores. O garotinho, que não gosta muito da escola, mostra que a sabedoria vai muito além dos bancos da sala de aula. Desde questões políticas específicas - do Brasil ou de Santa Catarina - até piadas simples sobre assuntos cotidianos, a força das suas tirinhas reside também na versatilidade. O ponto de vista infantil nos serve de guia nesses quadrinhos, nos quais os adultos aparecem sempre retratados sob o viés da criança. Para comprovar esse fato, basta observar o traço: assim como na clássica animação dos Muppets, apenas as pernas dos personagens mais velhos são desenhadas. Se a semelhança com Mafalda está no aspecto irreverente (e nos cabelos que são marca registrada), com Calvin o parentesco vai além: em muitas das tirinhas, Armandinho aparece com seu bicho de estimação (um sapo que, inclusi...

Desolación (Gabriela Mistral)

Livro de estreia da poetisa Gabriela Mistral (que viria a ser a primeira latina a ganhar o prêmio Nobel) "Desolación" anuncia a que vem pelo título: é uma obra desoladora. É tamanha a falta de perspectiva que, ao final, há um posfácio curto da autora em que ela diz: "Deus me perdoe este livro amargo - e aqueles que sentem que a vida é doce, que me perdoem também". Com muitos elementos autobiográficos (tão típicos do gênero), há o reflexo, nos poemas, das muitas turbulências que a poeta enfrentou em seus anos de juventude. Apaixonada por um homem comprometido, viu o fim abrupto deste relacionamento quando seu par suicidou-se. Católica com ardor, enfrenta dilemas constantes entre suas crenças religiosas e as muitas desgraças que a vida lhe impõe. Ademais, escritora com sangue indígena, é vítima de preconceito tanto por sua cor quanto por sua condição de mulher. A obra é dividida em quatro partes: vida, dolor, escuela e naturaleza. As duas primeiras refletem m...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...