Pular para o conteúdo principal

O segundo sexo (Simone de Beauvoir)

"Gosto da Simone romancista, mas não da teórica" é uma frase que já escutei de diferentes pessoas, ainda que nenhuma delas tenha ofertado opiniões embasadas sobre O segundo sexo. Talvez, das mais de 800 páginas da grande obra de Beauvoir, a famosa frase — "Não se nasce mulher; torna-se mulher" — seja o fio divisor entre entusiastas e rancorosos. E ambos, na maior parte dos casos, a repete sem conhecer o vasto contexto que a contém.

Eu me encaixo no grupo dos que julgavam Simone sem conhecê-la — já sabia, antemão à leitura, que O segundo sexo era uma obra defasada. E foi com esse espírito de descrença que comecei a lê-la. O princípio do livro, que trabalha questões biológicas com um olhar dos anos 1950, só corrobora os preconceitos que trazemos hoje em relação à sua escrita.

E as críticas possíveis ao livro não param por aí: os exemplos burgueses e brancos para justificar posições ideológicas, a falta de contextualização no que se refere a distintas classes sociais, o uso da psicanálise para justificar conceitos frágeis, uma visão bastante complicada de gênero (ainda que Beauvoir tenha transitado tão levemente entre diferentes possibilidades de exercer sua sexualidade).

No entanto, mesmo com tantas ressalvas, continua sendo um livro poderoso. Me emocionei bastante durante a leitura, já que muitas das situações descritas correspondem às que minhas avós, minha mãe e eu passamos. São mais de 70 anos que nos separam, e ainda assim o objeto de crítica de Simone continua presente, pautando a educação de meninas educadas para serem frágeis.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Armandinho 1, 2 e 3 (Alexandre Beck)

O personagem de cabelo azul já ganhou apelidos que o aproximam dos famosos Calvin e Mafalda. No entanto, o toque brasileiro é que faz a diferença e aproxima Armandinho de seus leitores. O garotinho, que não gosta muito da escola, mostra que a sabedoria vai muito além dos bancos da sala de aula. Desde questões políticas específicas - do Brasil ou de Santa Catarina - até piadas simples sobre assuntos cotidianos, a força das suas tirinhas reside também na versatilidade. O ponto de vista infantil nos serve de guia nesses quadrinhos, nos quais os adultos aparecem sempre retratados sob o viés da criança. Para comprovar esse fato, basta observar o traço: assim como na clássica animação dos Muppets, apenas as pernas dos personagens mais velhos são desenhadas. Se a semelhança com Mafalda está no aspecto irreverente (e nos cabelos que são marca registrada), com Calvin o parentesco vai além: em muitas das tirinhas, Armandinho aparece com seu bicho de estimação (um sapo que, inclusi...

Desolación (Gabriela Mistral)

Livro de estreia da poetisa Gabriela Mistral (que viria a ser a primeira latina a ganhar o prêmio Nobel) "Desolación" anuncia a que vem pelo título: é uma obra desoladora. É tamanha a falta de perspectiva que, ao final, há um posfácio curto da autora em que ela diz: "Deus me perdoe este livro amargo - e aqueles que sentem que a vida é doce, que me perdoem também". Com muitos elementos autobiográficos (tão típicos do gênero), há o reflexo, nos poemas, das muitas turbulências que a poeta enfrentou em seus anos de juventude. Apaixonada por um homem comprometido, viu o fim abrupto deste relacionamento quando seu par suicidou-se. Católica com ardor, enfrenta dilemas constantes entre suas crenças religiosas e as muitas desgraças que a vida lhe impõe. Ademais, escritora com sangue indígena, é vítima de preconceito tanto por sua cor quanto por sua condição de mulher. A obra é dividida em quatro partes: vida, dolor, escuela e naturaleza. As duas primeiras refletem m...

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

Esse é um daqueles livros que de tão recomendados, citados, comentados, já parecem ter sido lidos antes mesmo da primeira virada de página. Tinha uma visão consolidada de que o tema desta obra eram os conselhos que um escritor pode passar a outro - e não imaginava que, antes de tudo, essas cartas são uma espécie de manual para a vida. Tão necessário, aliás. Rilke se ancora na literatura, mas passeia por caminhos diversos: a solidão, a escolha da mulher, as amizades, os valores morais de cada um... Como um mestre frente a seu discípulo, o escritor o guia pela mão através do mundo. Nem sempre os seus ensinamentos são indiscutíveis. Há material que sobra, existem conselhos deixados de fora. Mas, superando seus pequenos deslizes como filósofo, Rilke se apoia na força das palavras. Seu discurso é uma torrente que nos leva, com um vigor romântico contagiante. Trechos: Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante h...