Para um livrão desses, me propus a uma jornada por diferentes versões de Anna. Compartilho um pouco do passeio por aqui:
O romance em si: em um calhamaço de tantas páginas, os personagens se tornam companheiros de travessia. Ao longo da narrativa, há altos e baixos – nem todas as partes terão a força da tão famosa frase inicial que abre a trama. Contudo, mesmo nos trechos maçantes, a intencionalidade do autor é bastante clara; difícil é se esquivar ao impacto da escrita de Tolstói nesse romance.
Assim como em "Guerra e Paz", o autor escolhe um personagem para ser o porta-voz de seus próprios ideais no enredo, mas isso não leva a um romance panfletário. Pelo contrário: cada personagem é tão bem construído que conseguimos nos identificar mesmo com as posições que Tolstói rejeitava, como o arrependimento de ter tido filhos (Dolly) e a rejeição a um casamento convencional (Anna Kariênina).
As partes que mais me tocaram foram aquelas em que a pequenez dos objetos cotidianos se mescla às emoções mais sublimes: é quase um Manoel de Barros na Rússia czarista. No encontro que definirá as relações entre Anna e Vrónski, por exemplo, a luvinha de renda da protagonista se enrosca, como se quisesse reter a decisão que mudaria sua vida – e, no famoso final, a imagem é retomada, sem conseguir impedir que a protagonista fosse arrastada pelo seu desfecho.
Algumas falas interessantes:
- Entrevista com o tradutor Irineu Franco Perpétuo: além de tudo que apresenta de informações sobre a obra, as tiradas do entrevistado são muito engraçadas. https://www.youtube.com/watch?v=ftqO_cQJPc8&t=1s&ab_channel=SalaJa%C3%BA
- Entrevista com Elena Vássina, que foi minha professora na faculdade S2 Foi o vídeo em que mais aprendi sobre alegorias e símbolos presentes no livro.https://www.youtube.com/watch?v=sOT5t36M8qk&ab_channel=AfonsoJr
- Podcast da Cia. das Letras: traz vários entrevistados com visões diferentes sobre a obra (algumas com as quais eu não concordo, mas sempre vale conhecer).
https://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/Radio-Companhia-41-Clube-Radio-Companhia-com-Anna-Karienina
- Palestra com Rosamund Bartlett, autora da biografia de Tolstói. É feita uma análise histórica muito interessante para resgatar as possíveis origens de "Anna Kariênina". Aproveitei para reler o capítulo correspondente na biografia; nele, a autora mostra que foram mais de 33 versões antes de Tolstói conseguir, de fato, engatar essa narrativa.
https://www.youtube.com/watch?v=2TXoXW289cU&ab_channel=umcrees
A série de 1977 é bastante completa: nela, aparecem inclusive personagens secundários e detalhes de cenas. No geral, é uma adaptação boa – às vezes, com um silêncio mais prolongado ou uma troca de olhares, os atores conseguem resgatar sutilezas da narração de Tolstói. O que não me agrada na série é a interpretação da protagonista, que é construída como uma mulher histérica e que não pesa a consequência de seus atos. Além disso, o final é péssimo, com um corte extremamente abrupto do restante do enredo e dos demais personagens.
Bem mais curtinha, a série de 2013 traz cenários lindos, mas que se restringem ao aspecto urbano da narrativa. O importante contraponto do ambiente rural, que é fundamental no romance, mal aparece aqui. Além disso, o recorte da produção é muito focado na relação de Anna e Vrónski, atribuindo um ar de novelão à trama.
Adoro esta adaptação mais recente de "Anna Kariênina"; para dar conta de um livrão de mais de 800 páginas, me parece bastante sincero assumir-se como fragmentária desde o princípio. Uma adaptação que usa uma linguagem bastante parecida e que também me encanta é a série "Capitu", de Luiz Fernando Carvalho.
Por mais que tenha uma duração reduzida e um ritmo acelerado, o enredo da produção também dá conta de alguns aspectos importantes na história, como a contraposição entre os casais Anna e Vrónski / Liévin e Kitty.
O DVD em que assisti ao filme de 1948 trouxe alguns extras interessantes: o encarte bem recheado, em que um pouco da história de Tolstói e do filme é apresentada, e dois documentários: "Tolstói: o homem por trás de 'Anna Karenina'" e "O legado de Tolstói". Em ambos, a presença exclusiva de entrevistados homens traz um viés bastante questionável na apresentação de alguns fatos da vida do autor, como a diminuição da importância de sua esposa como editora e copista de suas obras.
Por fim, o filme de 1948: última das adaptações que vi, confesso que já estava cansada antes mesmo de começar... mas o longa tem um ritmo tão bom, uma fotografia tão marcante, que engatei em mais uma versão da história sem nem perceber. O enredo não se preocupa em ser fiel à história original, mas em contar uma narrativa verossímil enquanto obra cinematográfica; além disso, é possível perceber que personagens tiveram características modificadas para se adequarem aos atores da produção. O marido de Anna, por exemplo, é muito mais forte nesta adaptação do que em qualquer outra – e a própria dificuldade em encenar o esposo enganado é tematizada. Do que menos gosto é do ator a quem coube o papel de Vrónski, que está sempre com um sorrisinho de canto na boca, pouco fiel à tragicidade da história.
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