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O morro dos ventos uivantes (Emily Brontë)

Conheci a obra por uma tradução de Rachel de Queiroz - achei um romancezinho interessante, mas sem entender o frisson que causava em tanta gente. Isso foi até perceber que o conservadorismo da escritora cearense se espraiou pelas charnecas inglesas.


Publicado durante a era vitoriana, marcada pela austeridade moral, o grande feito do livro é sua transgressão. Uma das leituras possíveis é entender o Morro dos Ventos Uivantes como uma alegoria do inferno. Por que uma tradução se atreveria a tornar o diabo menos feio do que parece? Ao limar o grotesco da escrita original, a tradução de Rachel invalidou o projeto como um todo. 


Dessa vez, lendo em inglês, tornou-se um dos meus livros preferidos. É um jogo infinito de espelhos distorcidos, com vidas que replicam as mesmas histórias ao longo de gerações. Penso agora que esses personagens com nomes e feições iguais talvez tenham sido a inspiração dos "Cem anos de solidão", que é outro de meus queridos. Bastaria diminuir alguns anos na conta para que o título também coubesse aqui.


Um exemplo da linguagem clara de Emily Brontë – e que vira rococó na tradução de Rachel de Queirós:

“The master tried to explain the matter; but he was really half dead with fatigue, and all that I could make out, amongst her scolding, was a tale of his seeing it starving, and houseless, and as good as dumb, in the streets of Liverpool, where he picked it up and enquired for its owner.”


"O patrão tentou explicar o que acontecera, mas, como estava morto de cansaço, tudo o que consegui entender durante o raspanete da senhora, resumia-se a uma história em que falava de o ter encontrado faminto e sem abrigo, a vaguear pelas ruas de Liverpool, tendo-o tomado ao seu cuidado e tentado encontrar quem o reclamasse."



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