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Mostrando postagens de agosto, 2016

Desolación (Gabriela Mistral)

Livro de estreia da poetisa Gabriela Mistral (que viria a ser a primeira latina a ganhar o prêmio Nobel) "Desolación" anuncia a que vem pelo título: é uma obra desoladora. É tamanha a falta de perspectiva que, ao final, há um posfácio curto da autora em que ela diz: "Deus me perdoe este livro amargo - e aqueles que sentem que a vida é doce, que me perdoem também". Com muitos elementos autobiográficos (tão típicos do gênero), há o reflexo, nos poemas, das muitas turbulências que a poeta enfrentou em seus anos de juventude. Apaixonada por um homem comprometido, viu o fim abrupto deste relacionamento quando seu par suicidou-se. Católica com ardor, enfrenta dilemas constantes entre suas crenças religiosas e as muitas desgraças que a vida lhe impõe. Ademais, escritora com sangue indígena, é vítima de preconceito tanto por sua cor quanto por sua condição de mulher. A obra é dividida em quatro partes: vida, dolor, escuela e naturaleza. As duas primeiras refletem m...

El aura (filme de 2005)

Do mesmo diretor de "Nove rainhas" e ainda estrelando Darín, este filme de Bielinsky tem uma aura bastante diferente de seu trabalho anterior. O humor, elemento tão importante na comédia policial que foi sua obra de estreia, é ausente aqui. "El aura" traz para o espectador mais elementos de escuridão, trevas do que a ideia de um amanhecer ou alguma luz no fim do túnel. O protagonista é um taxidermista sem nome, epiléptico, cujas ações são sempre intrigantes para o espectador. Uma de suas primeiras frases, logo ao início da obra, é "Você não me conhece".  Ainda que, naquele contexto, ele estivesse conversando com um companheiro de viagem, a citação parece ser uma indireta cheia de significados para os que assistem à película. Pouca empatia é desenvolvida pelos personagens ao longo do filme, e este talvez seja o seu ponto fraco. O carisma de Darín, mesmo em um protagonista do qual tão pouco entendemos, ajuda a suavizar esta lacuna. Ainda que não haj...

Urgente é a vida (Alcione Araújo)

Conheci Alcione Araújo pelo livro de crônicas "Cala a boca e me beija", que, apesar do título prosaico demais, pelo conteúdo que me atraiu mais do que o de "Urgente é a vida". Escritor sulista, bastante reconhecido nesta região do país, o autor foi também filósofo, característica que sobressai-se bastante nesta coletânea de crônicas. Ainda que o gênero exija uma reflexão sobre o cotidiano, em muitos dos textos deste livro a dissertação deixa pouco espaço para a leveza da crônica. As primeiras cem páginas contêm muitos dos melhores textos da obra. As duas primeiras crônicas, em especial, prometem um livro de muita poesia na linguagem - o que não se cumpre inteiramente. O primeiro texto traça uma intertextualidade (talvez não intencional) com a canção "Construção", de Chico Buarque, e o segundo relata o primeiro encontro do autor com Drummond. São as duas melhores crônicas do livro, logo nas primeiras páginas. Não se trata de um livro ruim; como mui...

La Gabriela: una historia de Gabriela Mistral (filme de 2008)

A biografia de Gabriela Mistral, em uma produção cinematográfica chilena, é uma homenagem mais que devida: não só uma das grandes poetas de língua espanhola, ela foi também a primeira latina a ganhar um Nobel por seus escritos.  Além deste grande feito, que já justificaria o interesse por essa personalidade, Mistral foi vanguardista em muitas outras áreas, com especial ênfase no campo da educação. Ainda que o filme mostre a poeta na função de professora, não há muita explicação sobre a sua importância no pensamento pedagógico da época. Mistral foi uma das grandes educadoras latinas do século XX (e, inclusive, chegou a conversar bastante sobre aspectos do ensino com outra poeta, a brasileira Cecília Meireles). O começo do longa é um pouco mais interessante, com a recitação de alguns dos poemas de Gabriela. No entanto, o foco desta obra (principalmente do meio para o fim) é mostrar o quanto a vida da poeta foi sofrida. É uma desgraça atrás da outra, sem o consolo de seu...

Frida (Hayden Herrera)

São tantos os títulos, ambientes, mitologias que cercam a figura de Frida Kahlo que podemos nos perguntar pelo porquê de mais uma biografia. No entanto, o trabalho realizado por Hayden Herrera é tão minucioso que o resultado não gera dúvidas quanto à sua qualidade ou necessidade no mercado editorial. Além do mais, para uma artista que majoritariamente se dedicou aos autorretratos, não é incoerente a grande quantidade de pesquisas biográficas sobre ela, personagem tão intensa da história da arte. O que particularmente merece atenção na obra de Herrera, além das pesquisas, entrevistas e explorações realizadas, é o cuidado de apresentar um pouco de Frida ao leitor por meio de suas próprias palavras. Ao contrário de biografias que não contam com uma sequer frase autoral do personagem retratado, neste livro temos várias cartas, rascunhos, desenhos e, ao final, uma compilação de algumas obras marcantes da mexicana. O mesmo vale para as pessoas importantes na vida da pintora, cujos tex...

Waterloo (filme de 1970)

A decisão de assistir a este filme veio de um desejo de compreender melhor o contexto do livro Guerra e Paz. Ainda que retrate um período posterior ao do livro, e com enfoque exclusivo sobre o personagem de Napoleão, não deixa de ser um complemento interessante à leitura. A obra cinematográfica parece funcionar bem como fonte de pesquisa, suporte, contextualização histórica. Para o ano em que foi produzida (1970), as cenas de guerra são bastante reais e o número absurdo de figurantes gera um filme quase epopeico. No entanto, ainda que possa a vir ser um bom amigo dos professores de história (cenas podem ser exibidas em sala de aula para ilustrar a vida de Napoleão) ou um meio de satisfazer a curiosidade de quem estuda a época, não é um grande filme. Por ter um número imenso de personagens, são poucas as falas de cada um - que, por sua vez, soam falsas e superficiais. Somos apresentados tão rapidamente a cada um dos figurantes que não nos comovemos pelo seu destino ao ...

Vermelho amargo (Bartolomeu Campos de Queirós)

Com menos de 100 páginas, em uma edição pequenininha, pode parecer, à primeira vista, que "Vermelho amargo" é um daqueles livros que se leem de uma sentada só, em uma tarde de preguiça. Ledo engano. Como o próprio título anuncia, esta obra é de tom amargo, difícil de digerir, incorporar, assimilar. Pequena, mas poderosa. O autor nos leva, por meio dos intrincados caminhos da narrativa de cunho autobiográfico, até a sua infância. Muito aquém de tardes fagueiras à sombra das bananeiras, enquanto criança o narrador passou por diversos traumas, violências não ditas, em um ambiente de pouco afeto. Assim, vai na contramão dos defensores da infância como época de felicidade plena. As descrições fazem muito mais do que contextualizar o leitor; levam a reflexões, questionamentos, angústias. Em sua transição da infância para a adolescência, o narrador revela, por meio de metáforas intensas, o seu estranham ento no mundo e como parte de uma família problemática.  A violê...

Radioactive: a tale of love and fallout (Lauren Redniss)

Marie Curie é um ícone dos tempos modernos, especialmente para o movimento feminista, e, no entanto, pouco sabemos sobre ela. Mesmo uma breve biografia, como é o caso desta, proposta em um livro ilustrado com relativamente pouco texto para o gênero, é surpreendente.  Muito mais do que dois Nobel, Marie é uma mulher com uma história de vida intensa e radiante - seus prêmios são só a consequência de uma personalidade única. Nos jornais, foi noticiada tanto como a mulher que consegue conciliar carreira e família quanto como estrangeira depravada que não teve nenhuma ideia original para a ciência. Acima das muitas críticas que recebeu em seu tempo, a física-química não interrompeu seu trabalho e nem se submeteu às exigências machistas que a queriam limitar. Pioneira em vários aspectos, a ousadia da polonesa esteve sempre associada a muita dedicação: o livro de Lauren Redniss destaca a paciência para recolher uma quantidade mínima de elementos radioativos, os trabalhos de pesqu...

O vil metal (Ferreira Gullar)

Livro que promete muito e desconstrói pouco, está longe de ser minha obra favorita de poesia ou de incluir Gullar entre minha lista de poetas favoritos. Ainda conheço pouco do autor, mas, ao menos nas duas publicações iniciais, o escritor parece mais preocupado com a sua persona do que com a qualidade de seus escritos; é muito ego para pouca poesia. Os poemas neoconcretos são incompreensíveis; na sequência, os poemas com um toque surrealista apresentam imagens muito pessoais, da qual o leitor consegue extrair pouco. Alguns versos são bons; um ou outro poema se salva, mas, no geral, é só um livreco de quase principiante.

O saci (Monteiro Lobato)

No projeto de releituras da infância que estou fazendo neste ano, não poderia faltar Monteiro Lobato. Ainda que a relação de amor e ódio seja cada vez mais polarizada agora, já adulta, foi um dos escritores que mais me marcou durante minhas primeiras leituras. Lembro de ter desistido dele somente ao chegar no livro "O poço do Visconde", que, à época, achei extremamente difícil, técnico. "O saci" é um livrinho complicado. Ele traz críticas à escravidão, ainda que bastante suaves, mas mostra também como Pedrinho fez questão de prender a figura mitológica em uma garrafa para obrigá-la a cumprir todas as suas vontades. Onde acaba a mitologia popular e começa uma certa alegoria à escravidão é difícil de definir. No entanto, é sim uma obra interessante para estudar a figura do saci - que foi tão preservada até hoje em parte também à famosa obra de Monteiro Lobato.

Mary Poppins (P.L. Travers - livro) e filme de 1964

O livro infantil da australiana P. L. Travers, publicado em 1934, é, aparentemente, muito mais moderno do que a sua versão para as telas do cinema, produzida 30 anos depois. Ao menos na primeira obra (a série completa possui oito livros), a ideia é bastante original e até um pouco à frente de seu tempo: a figura de Mary P oppins é inovadora e ousada, com uma leve dose de cinismo. O que mais encanta na leitura (e que se perde na adaptação) é o mau humor de Mary Poppins, seu ar esnobe e sabichão ao assumir o cargo de babá de quatro crianças em uma família de classe média inglesa. A protagonista foge do estereótipo de babá adorável para incorporar quase a figura de um Chapeleiro Maluco - com o pé fora da realidade e nenhuma papa na língua. O filme conta com muitos elementos de encanto para as crianças: coreografias, jogos de palavras, brincadeiras com sons e músicas, além de muitas cores (em uma época em que o technicolor ainda era um atrativo forte). O que me incomodou, particul...

The city out my window: 63 views on New York (Matteo Pericoli)

Uma ideia extremamente simples que resultou em um livro elegante e de conteúdo: a proposta de Matteo Pericoli, ainda que pareça singela, rende bons frutos. Com formação em arquitetura, o italiano parte de reflexões sobre o seu próprio ambiente de trabalho para realizar entrevistas centradas na importância do que se vê de cada janela.  Muito mais do que uma questão puramente arquitetônica, as 63 curtas declarações de artistas sobre o assunto mostram que ele tem sim sua profundidade. Uma das conclusões a que se chega, após a leitura, é que as vistas revelam mais sobre quem somos do que sobre o ambiente que nos cerca. A verdadeira moldura de cada janela não é feita de aço ou de madeira, mas, sim, do nosso olhar. Para cada entrevista, Matteo faz um sketch do ambiente descrito. Assim, podemos contextualizar as reflexões acompanhadas do retrato do entorno. É um livro interessante para todos e, para professores de inglês, renderia uma boa sequência didática relacionada à descriçã...

A guerra dos bastardos (Ana Paula Maia)

Ana Paula Maia foi uma das minhas descobertas literárias deste ano - mulher e negra fazendo literatura sobre os marginalizados, não parece apenas coincidência o fato de seu nome tanto custar a despontar entre as revistas e tertúlias literárias. Fascinada por "Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos", que foi o meu primeiro contato com a sua obra, comecei a pesquisar mais livros de sua autoria. Depois de "Gado animal", foi a vez de "A guerra dos bastardos". Um dos pontos interessantes da obra de Ana é a insistência nos mesmos personagens, livro após livro. Aqui pude conhecer talvez um rascunho, talvez uma outra cena da vida de Edgar Wilson, que foi também protagonista das duas publicações que li. Apesar de gostar de rever o personagem em um cenário diverso, este foi o livro de que menos gostei até agora da produção da autora. O seu maior problema é partir de uma situação bastante inverossímil no começo, o que me deixou desconfiada durante tod...

Lero-lero (Cacaso)

"Lero-lero", lançado pela saudosa Cosac&Naify em seu selo Cosac Portátil, pode enganar os desavisados: ainda que pareça nada mais que um livro de bolso, é a reunião da obra poética completa de Cacaso.  Muito conhecido como letrista de MPB, por vezes o nome de Cacaso passa distante das antologias de grandes poetas ou mesmo dos livros didáticos: o fato é que pouco sabemos sobre ele, ainda que não sejam muitos os seus escritos. Falecido aos 30 e poucos anos, vítima de um ataque cardíaco, o poeta refletiu na sua existência o conceito de sua poesia: breve, porém intensa. Os livros que compõem "Lero-lero" apresentam temáticas e propostas diferentes. Cacaso vai além da classificação de poeta marginal; se ele é o exímio dono de uma linguagem certeira (quase publicitária em seus trocadilhos espertos), sabe também como absorver a dureza da composição de um João Cabral e investe esporadicamente na arte do soneto.  Múltiplo, variável, é um dos grandes poetas bras...

Soppy (Philippa Rice)

Mais um livro de ilustrações do que um quadrinho propriamente dito, Soppy é o retrato da vida de um casal que começou a morar junto há pouco tempo. Não é nenhum grande clássico da literatura ou uma obra questionadora, com linguagem inventiva e nem nada similar. É uma história comum sobre um casal de classe média, branco, com privilégios e pequenos dilemas amorosos em seu dia a dia. É bobo, mas me identifiquei com tantas cenas que comecei a achar fofo. Ou sou eu que sou tão boba quanto o livro.