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Mostrando postagens de julho, 2015

Morreste-me (José Luís Peixoto)

A morte do pai é um tema recorrente na literatura universal - "Coplas a la muerte de su padre", de Jorge Manrique, talvez seja um dos textos mais conhecidos e antigos com essa abordagem. No entanto, apesar de caminhar por um terreno já muito trilhado, José Luís Peixoto consegue surpreender com o seu livro, de menos de 100 páginas. A força poética de sua obra se apoia na descrição dolorosa da perda - no ver o pai doente, infantilizado, ao mesmo tempo em que tem de enfrentar a própria impotência -, que é sucinta e pungente. Apesar de lidar com uma situação muito biográfica, o escritor consegue universalizá-la, causando identificação imediata com todos os leitores que tiveram ou terão de lidar com um contexto semelhante. É um livro para ser lido devagar, para absorver todo seu potencial lírico, mas não lentamente demais, para não afundarmos com o personagem em sua dor.

Livro das perguntas (Pablo Neruda)

Apesar de evitar livros traduzidos do espanhol, a edição primorosa da Cosac&Naify mereceu uma exceção. O trabalho de ilustração dos poemas-perguntas de Neruda é sensacional e potencializa a nossa reflexão sobre os temas abordados pelo escritor chileno. Não se trata de desenhos para "explicar o que autor quis dizer"; pelo contrário, são obras de arte para as quais não há interpretação ou resposta únicas (tal como no texto do livro). Apesar de brincar com o universo infantil, não há classificação possível para este breve conjunto de poemas-reflexões: muitos dos questionamentos propostos são de difícil racionalização, inclusive para os adultos. E, afinal, como julgar faixas etárias precisas no campo subjetivo da poesia? Neruda brinca com os grandes temas nas suas indagações: vida, morte, natureza. Pode ser que não haja uma única resposta para todos os questionamentos do poeta. Contudo, a matéria de sua poesia é a dúvida, e não as certezas - portanto, que cada p

O sal da terra (documentário de 2015)

Um documentário sempre nos dá um tom de verdade mais potente, revelando-nos situações difíceis, por vezes ocultas, ainda que, na maior parte do tempo, trate-se apenas de problemas aos quais nunca tínhamos nos dedicado com a devida atenção. Neste filme, vemos pelo olhar do grande fotógrafo Sebastião Salgado os extremos da miséria humana -  potencializada pela linguagem documental e pelas câmeras de Salgado.  Ainda que sua obra seja bastante conhecida, neste documentário podemos ver, sem censura, imagens do fotógrafo que nem sempre são exibidas na mídia, tal o seu grau de brutalidade - ou, melhor dizendo, de verdade. Afinal, bruto é o ser humano - que, como mostra Sebastião em suas diversas viagens -, está sempre em guerra, corrompendo-se e fazendo corromper. Os contextos históricos, de muita violência, fotografados pelo protagonista do filme, levaram-no a reflexões profundas sobre a nossa (des)humanidade. Suas fotos são sínteses de experiências de vida (ou sobrevida) chocantes

Caiu na rede (Cora Rónai)

O livro reúne textos famosos da internet e realiza com eles um ótimo trabalho, em nome do santo dos apócrifos anônimos: atribui a autoria correta de cada um. Com uma breve pesquisa, já fica bastante visível na obra que nem tudo é o que parece - ou, em muitos casos, o que não parece, nem de longe, ser o estilo do autor que lhe foi atribuído. O que é uma pena, apesar da ideia original da organizadora da antologia, é que a maioria dos textos da internet é muito ruim. Não é à toa que ninguém quer pôr o nome a risco com peças tão mal redigidas.

Quién tiene miedo de decir no? (Ruth Rocha)

O livrinho, muito bem ilustrado, já vai desde o título contra aquele ar moralzinha irritante, tão comum da literatura infantojuvenil: contra o politicamente correto, as crianças têm de saber sim como dizer o não. Têm de saber negar, bater o pé, fazer birra se for preciso - para que não sejam sempre submissas. Por outro lado, saber o "sim" também é uma parte importante da formação dos pequenos que não é esquecida. Assim, pulando de um advérbio ao outro, a obra lida com as crianças e toda a sua complexidade.

Lições (Vitor Cafaggi e Lu Cafaggi)

Ao retomar a sonoridade do primeiro título produzido para a coleção Graphic MSP (Laços), o Lições aproveita para recompor os personagens do modo como foram apresentados na obra inicial, com algumas modificações, e com a inserção de novos caracteres na trama. O traço dos desenhistas encanta uma vez mais (talvez as melhores ilustrações de toda a coleção), apesar de a história ficar um pouco aberta ao final. Talvez para a faixa etária à qual se destina fosse esperada uma conclusão mais certeira - mas, ainda assim, todo o desenrolar da trama vale a leitura.

38 estratégias para vencer qualquer debate (Schopenhauer)

Este livro leva muito da personalidade do seu criador: apesar de ser útil aos estudantes de retórica e dialética, não deixa de ser engraçado ver como o filósofo alemão, por vezes, recomenda técnicas infantis para derrotar o adversário. E o mais engraçado (ou triste) disso tudo é pensar que são justamente as ideias mais inocentes, tolas, que são mais utilizadas nos debates cotidianos aos quais temos acesso. O projeto do livro trouxe algumas estratégias de Schopenhauer ilustradas com exemplos da política brasileira - se, por um lado, esse recurso atualiza a obra, por outro lado, também a compromete com ideologias específicas. Quase todas as estratégias se resumem, basicamente, a como lidar com o seu orgulho próprio (aquele que te dá a certeza de defender o único ponto de vista possível), ao mesmo tempo que tenta abalar o do adversário. Ou seja: apesar de os debates tentarem usar argumentos racionais, ainda é o pathos que move o mundo.

Eu amo viajar

A coletânea de relatos de viagem é muito variada, organizada, lindamente diagramada... para os amantes de histórias de aventuras, é um prato cheio. O cuidado com cada página, as brincadeiras gráficas, as estampas divertidas... em suma, o  livro como um todo é convidativo. O diferencial desta obra é contar histórias de pessoas tão diversas, que viajam de maneiras contrastantes: há quem viaje só para andar de trem, quem leve o cachorro junto, quem viaja para surfar, conhecer baladas, quem vai todo ano ao mesmo lugar e faz tudo diferente (ou faz tudo igual)... E ao mostrar a amplitude dos modos de fazer a mala e sair pelo mundo, o livro desmitifica preconceitos e rixas: mochileiros x viajantes de luxo, viajantes glamour x aventureiros e por aí vai... Não é uma obra para levar na mochila (já que não se detém em roteiros específicos), mas sim no coração de quem ama descobrir novos lugares.

Viajo, logo existo - vol. I

O primeiro livro do casal que está rodando o mundo em seu carro, e administrando uma das páginas de turismo de maior sucesso no Brasil, é interessante e conta com boas fotos, ainda que não ofereça muitas informações sobre os locais visitados. No entanto, como, a princípio, a ideia era essa mesma - fazer um álbum fotográfico das viagens, antes do lançamento da aventura por escrito - o projeto continua sendo válido e informativo.

Armandinho 4 e 5 (Alexandre Beck)

Cada vez mais contestador, uma das minhas tirinhas favoritas nessas obras é uma em que, ao olhar-se no espelho, Armandinho tem a leve impressão de ter visto a Mafalda. É isso. Assim como a menininha argentina virou ícone dos quadrinhos argentinos, e Calvin foi o contestador dos estadunidenses, finalmente chega às livrarias brasileiras um personagem infantil que nos encanta com suas perguntas e inquietações. Mesmo que o Brasil seja um terreno fértil em HQs (em plantando-se, aqui tudo dá), Armandinho revelou um novo filão no setor: o dos personagens crianças com raciocínio melhor que o de muitos adultos. Imperdível.

Dalai Lama e Gandhi - Biografias em mangáa

Retratar a vida desses dois personagens icônicos, seja em mangá ou por qualquer outro meio, é uma tarefa digna de elogios (ou ao menos a intenção o é). Muito bem desenhados, os livros atestam uma boa pesquisa sobre os biografados. Apesar da limitação de espaço, já que tratam-se de mangás de um único volume, o enredo passa a impressão de um resumo bem-feito. Se fosse possível desenvolver as tramas, talvez tivéssemos obras com a qualidade da série Buda, de Tezuka. No entanto, ainda assim vale a tentativa. O que faltou em ambas as obras, especialmente na que trata do trabalho do Dalai, foi uma melhor revisão e editoração. Há falhas grandes, que tiram os mangás da lista de livros que colecionamos com orgulho.

Penadinho Graphic MSP

O projeto Graphic MSP traz ótimas releituras dos personagens de Mauricio de Sousa que marcaram nossa infância. No caso da narrativa do Penadinho, não é diferente. O linguajar, muito próximo ao das histórias do fantasminha publicadas, é complementado por um trabalho com a imagem que incorpora referências diversas. Com um quê de mangá, o traço dos desenhistas passeia por referências diversas, sem perder o estilo próprio.

Catálogo de luzes (Agualusa)

Agualusa é um dos mais queridos escritores angolanos para mim. Nessa coletânea de contos, é possível observar a raiz de ideias que se metamorfosearam em alguns de seus melhores romances - como a venda de passados aos novos ricos, o lagarto humanizado, o conceito da solidão a cercar todos os cômodos. A impressão que tive foi que os primeiros contos, talvez pelo fator cronológico, não são tão bem escritos quanto os que compõem o meio e o final do livro. Apesar da qualidade desigual, é um livro repleto de boas histórias e uma boa porta de entrada à literatura desse grande narrador. Trecho: Borges no inferno Jorge Luis Borges soube que tinha morrido quando, tendo fechado os olhos para melhor escutar o longínquo rumor da noite crescendo sobre Genebra, começou a ver. Distinguiu primeiro uma luz vermelha, muito intensa, e compreendeu que era o fulgor do sol filtrado pelas suas pálpebras. Abriu os olhos, inclinou o rosto, e viu uma fileira de densas sombras verdes. Estava estendido de

A teoria de tudo (filme de 2014)

O drama biográfico sobre Stephen Hawking ganha em qualidade por não tentar ser uma lição de moral de como encarar as limitações físicas. O personagem é retratado de forma que, se não chega a ser realista, ao menos incorpora alguns de seus defeitos na construção utópica da narrativa. Por ter sido baseado no livro escrito por sua primeira mulher, o filme ganha algum crédito especial no que se relaciona à pesquisa sobre os dados da vida do biografado. E, por ser uma narrativa guiada pelo olhar da companheira, começa justamente com o envolvimento amoroso de ambos - relação difícil, da qual resultaram alguns filhos e muitos conflitos, mas também a parceria. Do ponto de vista da física, é uma obra bastante adaptada para os leigos, sem entrar nos detalhes das teorias que tornaram o físico mundialmente conhecido. É interessante, mas nada que fuja muito do clichê (fora a ótima atuação de Eddie Redmayne).

A rosa púrpura do Cairo (filme de 1985)

Este filme entra obrigatoriamente na lista de qualquer professor de português - além de ser uma boa história, tem o adicional de discutir os limites entre ficção e realidade.  Apesar do mote um tanto bobo, do personagem que sai das telas do cinema para a realidade, o filme vai além da metalinguagem. Questões como a independência feminina e os interesses financeiros da indústria do cinema também são abordados. A construção dos personagens é um tópico analisado detalhadamente, e mais uma vez entra a serviço nas aulas de narrativas (assim como esclarece ao espectador desavisado como se estrutura uma ficção). A obra traz o melhor do humor de Woody Allen - sutil, reflexivo, ainda que em um contexto bastante hiperbólico.