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Mostrando postagens de agosto, 2019

Privacidade hackeada (filme de 2019)

O documentário sobre o uso irrestrito de nossos dados na internet acompanha a jornada de um professor universitário que decide resgatar suas informações pessoais na rede. Para isso, empreende um verdadeiro trabalho investigativo para descobrir aonde foi parar o registro de sua privacidade - o que inclui desde a data de aniversário e marcas preferidas até a gravação de áudios e filmagens não autorizados. Ainda que não seja mais surpreendente (afinal, a todo o momento nosso celular faz questão de sinalizar que sabia aonde estávamos e o que fazíamos), todavia o tema causa desconforto. Trata-se de uma invasão ainda pior do que registrarem seus momentos de intimidade; pelo contrário, o efeito mais agressivo do nosso hackeamento constante é muito mais sentido no âmbito coletivo. Ao direcionarem nossas ideologias, os donos de grandes empresas de rastreamento do cliente conseguem feitos tão impressionantes quanto estimular causas minoritárias já visando a discórdia e os embates políticos.

Gregório de Mattos (filme de 2002)

Ao elencar o poeta Waly Salomão para interpretar Gregório de Mattos, o filme biográfico sobre o Boca do Inferno parecia ter por objetivo trazer mais vitalidade à recitação dos poemas que perpassam a obra. No entanto, se a escolha foi acertada, ela não é o suficiente para manter o interesse pelo longa. Com um tom sépia que não sabe valorizar a fotografia, recitações longas e fastidiosas, o filme acaba prendendo mais a atenção pelo elemento da transgressão, tão presente na vida de Gregório. Contudo, até o profano acaba sendo banalizado, com as inúmeras cenas do poeta perseguindo freirinhas no convento. Não chega ser de todo dispensável para quem se interessa pelo escritor, mas é uma obra que exige mais paciência do que a leitura de fato das poesias.  

O homem que passeia (Jiro Taniguchi)

Já havia entrado em contato com a obra contemplativa de Jiro Taniguchi por meio do mangá "Guardiões do Louvre". Entretanto, em "O homem que passeia" me deparei com um tom ainda mais profundo pautando as observações do protagonista; afinal, trata-se aqui de uma publicação sobre a arte da caminhada e o ato de flanar pelas ruas da cidade. Aparentemente despretensiosa, a produção de Taniguchi enreda o leitor em mistérios dos quais ele mal se dá conta. Assim, de forma bastante sutil, é proposta uma narrativa não linear, que pode enganar aquele que não esteja atento às mudanças de traços e pequenos elementos que denunciam a temporalidade da história. O protagonista, do qual tão pouco sabemos (a não ser do seu prazer de caminhar sem rumo), consegue nos surpreender em uma reviravolta quase ao final da história - recurso similar também foi usado em "Guardiões do Louvre". Bem longe do universo de mangás de luta ou de romance, a obra de Taniguchi consegue desvela

Rua da Padaria (Bruna Beber)

O livro de poemas da jovem autora Bruna Beber propõe uma volta às raízes, passeando por ruas, eventos e personagens que participam de uma espécie de memória coletiva, já que povoa(ra)m tantas infâncias: a rua da padaria, o açougueiro, o machucado no joelho, o primeiro amor, as provocações na escola... Com um tom bastante informal, Beber replica em sua poética um jeito de contador de causo - como o de Manuel Bandeira ou Mario Quintana, por exemplo. No entanto, nem todos os poemas convencem pelo tom descontraído; para mim, ao menos, funcionaram melhor os textos da metade do livro para o fim, nos quais a intencionalidade poética parece mais trabalhada.

Helena (Machado de Assis) + Helena (mangá New Pop)

Terceiro romance publicado por Machado de Assis, "Helena" adianta alguns traços definidores da escrita do Bruxo do Cosme Velho. Ainda que esteja situada no Romantismo, a narrativa traz uma protagonista bastante ambígua e vanguardista - assim, mesmo que seja um dramalhão um tanto exagerado, a personalidade de Helena nos arrasta para dentro do romance. Há aspectos na figura da protagonista que antecipam pautas feministas do século XX: a não submissão a padrões socialmente impostos, o casamento posto em xeque, a necessidade de as mulheres decidirem o que estudam, a que se dedicam e de cavalgarem livres pelo mundo, sem terem de justificar suas atitudes perante os demais. Por ser bastante novelesco, a adaptação a mangá do tipo Shojo funciona bastante bem. A seleção de cenas da obra adaptada pela New Pop foi bastante certeira, selecionando os momentos principais da trama e as falas mais importantes para marcar o caráter de cada uma das personagens dentro da obra. Enfim, uma ada

O sentido de um fim (Julian Barnes)

Se já é premissa validada a de que sempre devemos desconfiar de um narrador em primeira pessoa, ainda assim está longe de esgotar-se a nascente de possibilidades que esse recurso narrativo oferece. Em um livrinho curto e poderoso, o inglês Julian Barnes consegue, mais uma vez, pôr em xeque a autenticidade de um discurso (e, nos tempos em que vivemos, saber negar uma fonte com argumentos bem construídos é uma habilidade a ser urgentemente aprimorada). Um dos truques utilizados pelo narrador em sua versão dos fatos é o de apontar suas próprias falhas - assim, o leitor sabe desde o princípio que não está diante de uma figura confiável. Dessa forma, estabelecido o pacto inicial de não confiabilidade, nos deixamos levar pela narrativa do ponto de vista que nos é oferecido - afinal, nosso impulso natural é preencher as lacunas da história, sem pensar que elas podem ter sido deixadas assim de forma proposital. Após finalizar a leitura, acreditei ter entendido alguns dos mistérios do roman

O sonho dos heróis (Adolfo Bioy Casares)

"O sonho dos heróis" traz uma narrativa que, aparentemente, passa sem deixar maiores rastros na memória do leitor. No entanto, ao elencarmos em uma só frase as palavras "aparentemente", "sonho" e "memória", já podemos nos dar conta de que o mundo construído por Bioy Casares em seu curto romance apresenta mais elementos do que poderíamos supor em uma primeira abordagem. Boa parte da trama principal descreve feitos cotidianos, comuns, que não atraem o leitor com o tão esperado real maravilhoso latino-americano. Contudo, é sob essa camada de realidade apática que perpassa a magia, a possibilidade de redefinir destinos, de misturar tempos e personagens em um mesmo cenário.  Assim, se é verdade que este é um livro que não provoca profundo impacto no leitor desde o seu começo, também o é que desperta a vontade imediata de relê-lo após seu glorioso final. Bioy Casares consegue reproduzir sensação similar à de acordarmos de um sonho ao final da leitu

Bruta aventura em versos (filme de 2011)

O filme-biografia sobre a escritora Ana Cristina César é bastante elucidativo, ainda que feito de maneira simples e sem muitas inovações na linguagem cinematográfica. Basicamente uma reunião de entrevistas, é uma obra que consegue dar uma visão panorâmica sobre a curta vida da artista. Merece destaque a escolha por não reduzir Ana a uma escola literária ou movimento específico. Ao longo dos depoimentos que são colhidos, o espectador pode ter uma noção da complexidade da autora, que não se deixava rotular com facilidade. Dentre os entrevistados, o poeta Armando Freitas Filho é o que fornece as informações mais íntimas sobre a escritora, aproximando o receptor da obra dessa personalidade tão intensa e, ainda assim, tão oblíqua.

Home Fire (Kamila Shamsie)

Kamila Shamsie, vencedora do Women's Prize de 2018, é uma escritora paquistanesa e britânica. Situada entre duas nacionalidades e continentes, a autora reflete em sua narrativa culturas tão diversas como a de um lorde e a de um sheik.  Ainda que as raízes múltiplas da escritora já fossem temática suficiente para sua escrita, ela ancora o romance "Home Fire" em outro ponto do mapa e do espaço: sua obra é uma releitura da história de Antígona, uma das tragédias clássicas de Sófocles. O que a autora faz é dar uma roupagem nova a este mito fundador da cultura ocidental, trazendo a questão da dignidade do enterro para nossa época. Assim, questões bastante complexas, como a participação de jovens no Estado Islâmico e em ataques terroristas são analisadas sob um viés não maniqueísta - e tampouco conciliatório.  A narrativa desenvolve-se com um estilo seguro, mas não escapa de alguns clichês. O final da obra foi particularmente decepcionante e previsível, beirando um discur

Meus documentos (Alejandro Zambra)

Enquanto inicio este texto, percebo que já li todas as obras de Alejandro Zambra já publicadas no Brasil - ainda que não o escritor não seja daqueles que me vêm imediatamente à memória ao pensar em autores contemporâneos favoritos. E, assim como passo pela escrita de Zambra quase sem notar, o chileno se esmera em construir narrativas sobre passagens, trânsitos, deslocamentos de memória e de afetos. Em sua pauta, registra o cotidiano, sem grandes ênfases - mas na dose suficiente para conquistar um leitor cativo. Creio que gosto ainda mais do autor enquanto contista, ainda que a diferença seja tão sutil (todos seus romances - ou novelas - são bastante curtos). Na seleção disponível em "Meus documentos", acho que todos os contos, de uma forma ou outra, me agradaram - tarefa tão difícil em reuniões do gênero. A presença do narrador em primeira pessoa, esfumaçando os contornos entre o autoral e a ficção, é um dos muitos recursos de que Zambra lança mão para construir uma na

I'd rather be reading: the delights and dilemas of the reading life (Anne Bogel)

Livro para iniciados, este volume de Anne Bogel conversa com um público bastante específico: os ratos de biblioteca. Para quem não tem como prioridade métodos de organizar a estante ou modos de montar uma lista de livros por ler, talvez não seja a obra mais indicada. Bastante pessoal, exige do leitor também uma certa empatia pela figura de Anne Bogel - o que nem sempre foi o meu caso. Com uma vida bastante distante da minha (três filhos, religião, vivências de mãe e dona de casa), só me identifiquei com a obra nas discussões específicas sobre leituras. Leve e despretensioso, é um livrinho bookworm  para passar o tempo.

A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata (filme de 2018)

Ainda que seja uma história doce e sem muito aprofundamento nas temáticas que aborda, este filminho de Sessão da Tarde traz alguns pontos interessantes. Além de trabalhar o amor pela leitura e pelos livros, coloca como protagonista uma escritora de meados do século XX, que se mostra bastante independente e ousada para sua época. Ambientado no entre e no pós-guerra, tem ainda um personagem bastante curioso (que foge do estereótipo estadunidense): um soldado nazista "bonzinho". Mesmo que não seja uma figura abordada em toda a sua complexidade, coloca em xeque uma das principais narrativas sobre o período: a de que a nacionalidade (ou a participação na guerra) estava intrinsecamente relacionada à ética do indivíduo. Não se trata de uma obra feita para surpreender o espectador, mas sabe construir uma narrativa que vai prendendo o interesse de quem a assiste. Há uma espécie de mistério que, aos poucos, é resolvido pela protagonista e pelo receptor da obra, do outro lado da tel

La jaula de oro (filme de 2013)

Dentre os tópicos do cinema latino-americano está o da narrativa centrada em pré-adolescentes, dos quais o chileno Machuca e o mexicano Mientras el lobo no está  são excelentes exemplos. Talvez histórias arquetípicas de nações eternamente em desenvolvimento, talvez reflexo de uma juventude abandonada e sem esperanças no futuro: são muitas as leituras possíveis dos filmes centrados nessa faixa etária, o que também se aplica a  La jaula de oro . Com uma discussão absolutamente contemporânea (ainda que meia década já tenha passado de sua estreia), o longa traz como protagonistas 3 jovens que tentam atravessar a fronteira dos Estados Unidos, partindo da Guatemala. Com pouquíssimos diálogos e um tom mais pausado, o filme coloca o espectador em estado de suspensão e insegurança todo o tempo, mimetizando assim a falta de certezas dos personagens retratados. Ainda que haja momentos de beleza na obra (o primeiro amor, a amizade entre os jovens), ela nos leva em uma crescente espiral de tris

Las ovejas no pierden el tren (filme de 2014)

Filme bastante despretensioso, propõe um olhar sobre as relações amorosas (e também trabalhistas) nesta nossa era. O foco são os casais pós-40, que já têm questões como o planejamento de filhos, o divórcio e a necessidade do casamento tradicional em mira. Esses assuntos são mesclados à ideia da vocação profissional versus o pagamento dos boletos. Levemente engraçado, desperta algum interesse do espectador. No entanto, traz uma abordagem bastante simplista dos temas, por vezes vazia e sem muitas razões que a justifiquem.

Carpinteros (filme de 2016)

"Carpinteros" poderia ser apenas um filme a mais sobre o injusto sistema carcerário latino (aqui, no caso, retratando especificamente o contexto da República Dominicana). No entanto, a obra escolhe uma abordagem bastante interessante ao focar a língua de sinais criada pelos presos para transmitirem mensagens de um presídio a outro. Ademais, há uma aposta na narrativa de um amor impossível entre os presos, que contribui para tornar o discurso sobre a comunicação e as conexões interpessoais ainda mais rico.  Sem elementos de muita inovação, é um filme justo sobre a temática que escolhe. Longe de ser grandioso, não esbarra também no superficialismo mais banal.

El cuento de las comadrejas (filme de 2019)

Com um humor tipicamente argentino, "El cuento de las comadrejas" traz algumas das melhores características do cinema portenho às telas: o tom sarcástico, as atuações incisivas, o real maravilhoso que nos soa tão verossímil em terras latino-americanas. Um dos recursos utilizados para gerar o riso é parodiar outros gêneros do drama; assim, temos desde o tom melodramático das novelas mexicanas até o clima noïr de suspense e mistério. Tudo combinado, cria-se uma grande salada cinematográfica - à qual, ainda assim, não falta um bom tempero argentino. Talvez um pouco mais longo do que a história que tem a contar, mesmo assim a obra não chega a ser cansativa. É uma opção justa de entretenimento, sem grandes pretensões - mas com bons resultados.