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Mostrando postagens de junho, 2020

Como se fosse a casa: uma correspondência (Ana Martins Marques / Eduardo Jorge)

Experimento doses reduzidas de poesia contemporânea – que, muitas vezes, ainda considero hermética ou insondável em sua cotidianidade. O Como se fosse a casa  se abriu como convite, propiciando o encontro com uma escrita que me tocou muito mais. Talvez seja o momento certo para o livro (já que ninguém deveria sair de sua concha em tempos de Covid), que rendeu uma das experiências mais gostosas que tive com a poesia produzida hoje. A ideia central é do diálogo entre os poetas, ocupando postos diferentes, mas que retornam à mesma base – ou ao mesmo não lugar, às impermanências. Toda a construção narrativa-poética-epistolar é muito bem conduzida, mas foram os poemas de Ana Martins que me fisgaram. A linguagem clara para compor metáforas difíceis, pontes imprevistas... talvez tenha se tornado uma favorita, dentre tantos contemporâneos que ainda me assustam. 

O dançarino do deserto (filme de 2014)

Por ser baseado em uma história real bastante recente, o filme acaba envolto nas camadas políticas que nortearam a escolha em filmar a biografia do dançarino Afshin Gaffarian. Ainda que seja contra a ditadura e a opressão, não é um filme que deva ser celebrado sem ressalvas; afinal, pouco conhecemos da política iraniana para apoiarmos incondicionalmente os manifestos de que os protagonistas participam, por exemplo. O enredo segue o roteirinho de Hollywood (sendo que é uma produção britânica, saudita, romena e marroquina). Há o tempo certo para chorar, para torcer pelo casal, para sofrer a catarse pela dança. Contudo, as cenas de performance dos bailarinos são realmente bonitas – mesmo que também pautadas por clichezinhos. Não é um filme sensacional, mas vale a dança.

The Beguiled (filme de 2017)

De Sofia Coppola, havia assistido apenas ao "Virgens Suicidas" – e, de certa forma, pude reencontrá-lo em "The Beguiled". Novamente, o tema de mulheres estranhamente enclausuradas (e que culminará em violência) aparece na obra. Além disso, a diferença de idade entre as crianças da escola parece um espelho da escadinha de irmãs do filme mais antigo. Também há a presença de Kirsten Dunst, que passa do papel de mocinha para o de matrona. Entre o caminho do doce e do sombrio, a trama constrói aos poucos os contrapontos que a norteiam. Não é uma obra rica em significados, mas consegue surpreender minimamente o espectador com personagens mais complexos do que se supunha inicialmente.

Passarinheiros (filme de 2019)

Documentário ambientado na fronteira entre os Estados Unidos e o México, o filme revela um pouco do turismo de luxo dos ornitófilos. Assim, a parte mais interessante da obra são as entrevistas do lado latino da fronteira – em que se podem ver os guias de passeio realmente emocionados com a natureza, pois sabem que dela depende seu sustento e toda a sua existência. Do lado texano, os entrevistados parecem ter mais empatia com os passarinhos do que com os hermanos.   

Dança dos pássaros (filme de 2019)

O filme nos permite o prazer do olhar do ornitófilo, mas sem sair do sofá. Levando o espectador para as florestas da Guiné e do Panamá (dentre outros cenários tropicais), o documentário revela esplendores da vida animal. Muito mais do que pássaros bonitos, o que surpreende é a versatilidade da natureza – há desde aves que imitam crianças brincando até as que constroem obras de engenharia megalomaníacas para conquistar a parceira. Ao ver rituais de acasalamento tão cênicos, é difícil não pensar que o conceito de arte vai muito além do que é humano.

Fun home: uma tragicomédia em família (Alison Bechdel)

Uma de nossas tarefas, enquanto adultos, passa por tentar entender quem foram nossos pais. Nesse processo de espelhamentos, procuramos encontrar quem somos na imagem que se reflete tortamente em nossos genes e decisões. Em "Fun Home", a autora Alison Bechdel cria uma narrativa autobiográfica poderosa, na qual a figura de seu pai – gay e suicida – é analisada poeticamente. Repleta de intertextualidades literárias, a HQ é um prato cheio para quem gosta tanto de mitos gregos quando da cena parisiense dos anos 1920. A linguagem da autora, ainda que incisiva, resgata bastante desse universo literário nas descrições que faz de seu ambiente familiar. "Fun home" é também uma história de autodescoberta. É ao se descobrir homossexual que Alison vislumbra os segredos de seu pai, até então não revelados. Livro doloroso, constitui uma homenagem difícil (e nem por isso menos potente).

A terceira vida de Grange Copeland (Alice Cooper)

Primeiro romance de Alice Cooper, "A terceira vida de Grande Copeland" não é um livro sem falhas estruturais ou narrativas. Relativamente longo, me cativou mais da metade para o fim, quando os protagonistas são realmente delineados. A primeira parte da obra conta com uma quantidade grande de personagens, que por vezes são eliminados da trama posterior sem maiores explicações. Escrito nos anos 1960, um dos pontos de destaque do livro é abordar diversas visões de mundo sobre o racismo, sem ser excessivamente superficial ou panfletário. Os discursos possíveis sobre o movimento negro – seja do ódio contra qualquer branco, seja a favor de lutas conjuntas entre as etnias – perpassam a obra, sem chegar-se a uma voz conclusiva sobre o tema. Os personagens que movem o enredo são bastante falhos. Grange Copeland, que empresta seu nome ao título, é um dos fortes exemplos nesse ponto: apresenta três vivências diferentes, e as três são permeadas de erros. Com um final interessante, que ap

Ponto cardeal (Léonor de Récondo)

Ponto Cardeal  recebeu o prêmio de melhor livro pelos estudantes de Ensino Médio da França. O romance toca em questões urgentes, necessárias, pois detalha o processo de autodescoberta de um homem trans. Ainda assim, não posso negar que a premiação recebida me pareceu bastante significativa pelo tom leve de ensinamento que traz – algo próximo de nossa Coleção Vaga-Lume. Questões de representatividade são sempre complexas – e, em um mundo literário no qual pouco se fala delas com seriedade, qualquer obra escrita com boa fé já é um feito notável. No entanto, talvez a maior parte dos méritos do romance de Récondo fiquem na intenção, e poucos na literariedade em si da obra. Por ter sido escrito da perspectiva de uma mulher cis, apresenta problemas de verossimilhança na construção da personagem principal. Além disso, outras pautas de não menor importância (como o machismo da protagonista) são ignoradas na trama. Se é uma boa tentativa, está longe de ser um livro sem falhas.

Dolor y gloria (filme de 2019)

Considerado o filme mais intimista da carreira de Almódovar, "Dolor y gloria" não conta com o colorido que consagrou o diretor. Não é apenas a paleta de cores dos ambientes que é ligeiramente mais sutil (ou mais elegante); a polifonia, com vozes sobrepostas (por vezes aos berros), tampouco se destaca aqui. Afinal, é uma produção que gira em torno de uma voz melancólica, que conduz os eventos da narrativa como um todo. Ainda que as atuações sejam fortes, o enredo não tem viço o suficiente para se sustentar. É quase como se fosse um longa para iniciados, cujo maior prazer é tentar associar os fatos da trama à vida do diretor.

O narrador contemporâneo e a análise de originais (Vanessa Ferrari)

A leitura de teses costuma passar longe das que fazemos por diversão – afinal, frequentemente são textos densos, cheios de citações e notas de rodapé, por vezes enclausurados na torre de marfim dos academicismos. No entanto, quando essas teses analisam experiências de trabalho (em um terreno mais rés do chão que o da pura filosofia), o resultado pode ser instigante. Neste seu trabalho de mestrado, a autora categoriza os originais que recebeu ao longo de sua carreira como editora. Para quem gosta do tema, é um excelente norteador para saber o que se fazer ou não na escrita. Crítica da própria linguagem utilizada em trabalhos acadêmicos, Ferrari nos apresenta, com uma estrutura límpida, um texto que é uma delícia de ser lido. 

Vivir entre lenguas (Sylvia Molloy)

Um dos livros mais cativantes que li neste 2020 caótico foi o "In Other Words", de Jhumpa Lahiri, no qual a autora conta como foi a sua experiência de imersão total no italiano (língua na qual escreve hoje). O tema do aprendizado de línguas me encanta – o que já gerou minha simpatia por este livro de Molloy desde o seu título. Em textos bastante curtos, a escritora relata experiências cotidianas de quem vive entre três idiomas: em qual língua se sonha? Qual língua é reconhecida como casa? Em que idioma se pensa? Em qual se atende o telefone? Apesar de não ir a fundo nos temas que toca, é um livro escrito com muita sensibilidade e astúcia linguística. 

Jamás leí a Onetti (filme de 2010)

Porta de entrada para a leitura de Onetti, o documentário traça um panorama interessante da vida do escritor uruguaio. No entanto, apesar do título convidativo, é uma obra para iniciados: os entrevistados só são devidamente creditados ao final. Assim, quem não conhece figuras como Jorge Drexler e Eduardo Galeano tende a, talvez, não entender o alcance multilinguístico da literatura produzida pelo biografado.

Medicina dos horrores: a história de Joseph Lister (Lindsey Fizharris)

A quarentena foi uma boa oportunidade para desencalhar da estante livros mais leves, que exigem menos atenção e paciência. Em princípio, nenhum dos temas de "Medicina dos horrores" dialoga comigo; entretanto, o fato de fugir de meu campo de atuação foi mais uma das vantagens que a obra me ofereceu, já que me permitiu um pacto descompromissado de leiga no assunto. Focada na vida de Joseph Lister, a biografia dá um bom panorama histórico da medicina e da Europa do século XIX. É bastante interessante o quanto um fato simples (passar a usar antissépticos nas cirurgias) foi responsável por uma forte mudança em diversos campos, que vão da medicina à arquitetura. Além disso, a autora do texto nos mostra que, sem os estudos de Lister, talvez o próprio conceito de hospital tivesse perdido força para os tratamentos realizados em casa.

Correr (Drauzio Varella)

Parei de acompanhar Drauzio Varella na época de "Estação Carandiru"; assim, reencontrar o médico como autor foi uma experiência bastante curiosa. Ademais, o livro muda o foco da atuação mais conhecida de Drauzio – no sistema carcerário – para uma vivência bastante pessoal, que quase se assemelha ao registro de um diário. Tenho gostado bastante de correr e de entender o funcionamento do corpo em movimento. Dessa forma, a história de como um senhor de 50 anos resolveu de um dia para o outro virar maratonista (e com sucesso) só poderia me cativar. Há uma parte um tanto exaustiva no livro, que se propõe a analisar a história das maratonas desde a Grécia. No entanto, quando volta ao relato pessoal, a escrita de Drauzio é uma delícia. Ainda que com o passo mais apressado, há um quê de filosofia peripatética em quem descobre o seu meio e arredores a pé.

Um homem bom é difícil de encontrar (Flannery O'Connor)

Flannery O'Connor teve uma vida curta, na qual se consagrou principalmente como escritora de contos. Esta coletânea foi minha primeira imersão na obra da autora, da qual saí com algumas impressões conflitantes.  As personagens que movimentam as tramas são bastante caricatas do sul dos Estados Unidos: preconceituosas, racistas, calcadas na religião e na moral. Assim, elas geram uma antipatia imediata – e o fato de a própria autora ser uma mulher muito religiosa não melhora essa impressão. É difícil encontrar prazer nos enredos quando se sabe que a intenção de Flannery era criticar tudo o que não fosse redenção por Cristo. Além disso, outro fato que me incomodou em alguns contos foi a ênfase em aspectos que antecipam o final. Seguindo as lições de Tchekhov, Flannery sabe que, se um revólver aparece no conto, é para ser disparado. No entanto, é tamanho o foco colocado sobre o gatilho que se torna um pouco óbvio para o leitor o desfecho. O primeiro e os últimos contos da coletânea são

Donnie Darko (filme de 2001)

Assisti a Donnie Darko pela primeira vez há pelo menos uma década; lembro que minha impressão inicial sobre o filme era a de ser bom, ainda que muito estranho. Coincidentemente, reassisti ao longa na sequência de uma releitura que também me impactou bastante ("O apanhador no campo de centeio"). Como ambas obras tratam de personagens jovens, tentando lidar com a passagem traumática para a vida adulta, acabei relacionando-as fortemente. Assim que percebi os primeiros sinais de intertextualidade, fiquei atenta para identificar as possíveis conexões entre o filme e a obra-prima de Salinger. Não foram poucas as pistas que encontrei (e alguns dos muitos textos especulatórios sobre "Donnie Darko" confirmam essa teoria).  Claro que o filme explora temáticas que ultrapassam a do livro; ainda assim, foi uma experiência bastante interessante lê-los pela mesma chave, enxergando coincidências que me permitiram entender melhor o protagonista e suas decisões ao longo da trama.

The Catcher in the Rye (J. D. Salinger)

Li este livro pela primeira vez um pouco depois de terminar a faculdade, em 2013. Odiei a leitura então – principalmente pelo fato de que já tinha uma ideia preconcebida sobre a obra, que passou bem longe do que o enredo de fato trata. O título me remetia a um cenário campestre, durante um pôr do sol, no qual algum camponês chegasse a uma realização pessoal em meio à plantação de centeio: era essa a imagem que tinha em mente quando entrei em contato pela primeira vez com Holden Caulfield, tão avesso a romantizações como a minha. Durante a releitura, pude perceber que a minha insistência na imagem errada se parece à que o próprio Holden faz. Afinal, a personagem parte da compreensão equivocada de uma letra de música para chegar à conclusão de qual seria o sentido de sua vida. Agora, já sem o choque de não encontrar na obra o que esperava, a releitura de "The Catcher in the Rye" foi uma das mais proveitosas que já fiz. Os sete anos que intervalam as leituras me deixaram