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Mostrando postagens de agosto, 2017

PK (filme de 2014)

Em meio a um deserto, luzes surgem no céu. Um disco voador saído dos episódios do Chapolim ocupa o fundo da cena e, de dentro dele, aparece o protagonista, nu, com um colar que parece de brinquedo no pescoço. Os primeiros cinco minutos de PK são para desanimar qualquer leigo em cinema de Bollywood a prosseguir na experiência (ou, ao menos, a tentar assistir ao filme esperando por algum conteúdo de qualidade). No entanto, a graça do cinema indiano está justamente aí - tirar uma deliciosa filosofia das imagens mais banais, clichês, exageradas.   O mote patético de PK - um alienígena que desce à Terra e se espanta com nossa pluralidade religiosa - é, talvez, uma das poucas abordagens possíveis para debater um dos temas tabus: a fé. Com uma inocência arquetípica, o personagem principal faz o que tantos seguidores de crenças já deixaram de fazer há muito: ele questiona. Indaga. E, assim, provoca e cria uma legião de inimigos - dentro e fora das telas. O longa causou um grande rebuliço e

Contraponto (Aldous Huxley)

O fato de ser o livro que inspirou Erico Verissimo a escrever o delicioso "Caminhos Cruzados" foi o que me levou a esta leitura. Mais conhecido pela distopia de "Admirável mundo novo" e por seu relato de uso da droga mescalina, Huxley, para mim, tinha aquela aura de autor descolado, questionador, irreverente e com uma linguagem tão clara e acessível quanto a do Verissimo-pai. No entanto, essas impressões seguiram pouco além das primeiras páginas de imersão na obra. A quantidade de personagens é enorme, o que torna difícil para o leitor não só o acompanhamento do enredo, mas também os vínculos com essas figuras. É penoso sentir empatia - e não só em função da  troca constante de cenários e atores na trama, mas também pelo fato de o livro, como um todo, ser o retrato de uma sociedade burguesa bastante elitista, quando não fútil e descartável. Se a composição da trama já não é simples, esse efeito se intensifica com uma linguagem potente, mas por vezes mais fil

Dunkirk (filme de 2017)

Com tantos filmes sobre a Segunda Guerra, parece cada vez mais difícil encontrar um novo viés sobre o tema. E não se trata de uma real falta de assunto - afinal, ainda há muito o que se dizer ou se reforçar sobre as atrocidades desse período - mas sobre uma ênfase constante nas mesmas abordagens. A quantos filmes sobre crianças judias em campos de concentração todos nós já assistimos, com um discurso que, ao mesmo tempo que se baseia na emoção, ainda não revela toda a crueldade da barbárie? Quantas vezes já vimos soldados estadunidenses sendo retratados como os heróis da guerra - quando, muitas vezes, eles estupravam as mulheres a que vinham salvar, por exemplo?  Talvez por ser britânico, Christopher Nolan consegue sim um olhar um pouco diferenciado sobre o conflito; segundo as línguas ferinas, é um filme com a versão Brexit da história. Ainda assim, exceto pelo final, a verdade é que são poucas as idealizações e momentos de salvação na trama, o que a torna um pouco mais verossímil.

O conto da aia (Margaret Atwood)

Enquanto a utopia é a etiqueta atribuída para catalogar os mundos sonhados, os panoramas ideais, a distopia age como seu contrário: igualmente possível em uma realidade distante, é marcada pelo signo do negativo, da falta, da opressão. Classificado como romance distópico, "O conto da aia" gera polêmicas - afinal, como a própria autora já afirmou em várias entrevistas, todo o enredo é inspirado em situações que já existem. Se distópico, seu livro tem ao menos um dos pés ancorado fortemente na realidade - e, justamente por isso, sua trama é tenebrosa. Em um futuro próximo, as fêmeas se tornam inférteis em função do excesso de radioatividade. Nesse contexto de crise (tanto de população quanto da produtividade de alimentos), um estado autoritário assume o poder dos Estados Unidos, sob o pretexto de estar combatendo os terroristas. Depois deste golpe, todas as atrocidades são validadas, e passam a ser a lei, o bastião da moral segundo o texto bíblico. Mais do que um plot , a ide

Ex_machina (filme de 2014)

Inicialmente o plot me atraiu: convidado a fazer parte de um experimento de ponta com inteligência artificial, um programador se dirige a um laboratório altamente vigiado para realizar os primeiros testes com os robôs-humanoides. Impressionado com a tecnologia empregada, ele começa a questionar como essas criaturas adquirem a linguagem - uma discussão que envolve modernas teorias linguísticas, remetendo a nomes de peso como Chomsky. O filme prossegue, com as devidas reviravoltas no enredo, um clima de suspense e efeitos especiais que condizem com o gênero ficção científica. É uma trama relativamente interessante, que prende, por alguns momentos, a atenção do espectador. No entanto, apesar de não ter me frustrado enquanto o assistia, não é o tipo de filme que marca, que permanece. Pouco tempo após vê-lo, já me esqueci de boa parte dos detalhes do enredo e não tenho carinho especial por nenhuma cena. Assim, talvez seja correto julgá-lo apenas como entretenimento, sem exigir nada mais

Caminhos Cruzados (Erico Verissimo)

Erico Verissimo é um cânone da literatura brasileira: muitas publicações, presença nos livros didáticos de língua portuguesa, adaptação para séries e filmes. No entanto, apesar de alguns livros na minha estante (todos ganhados de presente), era um autor do qual nunca tinha lido nada - se não me engano, nem uma única linha. Não consigo definir o que me deixou afastada tanto tempo da escrita do autor sulista, mas é preciso correr atrás do prejuízo. O texto fluente e mordaz de Verissimo me fisgou, e não vejo a hora de ler e conhecer mais do autor. Caminhos cruzados é uma narrativa com estrutura bastante moderna: personagens diversos são os protagonistas da obra, sem que suas histórias se cruzem necessariamente entre si. Ao optar por apresentar uma miríade de vivências ao leitor, Verissimo oferece um panorama bastante rico da vida em Porto Alegre no início do século XX. A ampla gama de personagens gera identificação ou reconhecimento de caracteres alheios em muitos deles: qu

O filme da minha vida (filme de 2017)

Apenas o fato de ir ao guichê do cinema e pedir um ingresso para "o filme da minha vida" já é uma prerrogativa da amorosa metalinguagem deste excelente (se não o melhor) filme brasileiro, dirigido por um maduro e poético Selton Mello. O trailer , de pouco mais de 2 minutos, já é o suficiente para dar uma amostra da incrível fotografia desta obra. Inspirado em um livro do chileno Antonio Skármeta (também autor da história por trás de "O carteiro e o poeta"), o longa capta captura belos elementos da linguagem literária e os transpõe para a tela, transformando tudo em uma deliciosa narrativa, plena em poesia e lirismo. Longe dos esterótipos do cinema brasileiro (pouca roupa, muito calor, palavrões contabilizados por minuto, espetacularização da violência), o filme consegue atingir aquela rara camada de universalidade particular - revela uma realidade que é nossa, mas que pode ser lida por muitas culturas. Talvez esta distância dos clichês nacionais esteja relacio

Anne of Green Gables (L. M. Montgomery)

Apesar de só ter virado hype no Brasil recentemente, em função da série "Anne with an E" na Netflix, o romance quase homônimo foi um grande sucesso da literatura infantojuvenil na época de seu lançamento, no início do século XX. Quase que uma predecessora do boom  dos livros para crianças, a escritora L. M. Montgomery, animada pelas enormes vendas, publicou várias sequências para a sua história, transformando-a em um verdadeiro ícone da ficcção. Um exemplo do quanto a trama foi (e é marcante) é o fato de que a ilha em que supostamente viveu a personagem Anne tornou-se uma rota de turismo, com direito a selfies  tiradas em frente às casas típicas do lugar e compra de muitos souvenires. Adaptada para desenhos japoneses, criou também uma legião de fãs do outro lado do mundo. Mas em que esse enredo, com um clima marcadamente bucólico, ainda atinge os leitores (e espectadores) de nosso tempo? Talvez despercebidos na época do lançamento, há muitos traços modernos nesta p

Arvorada (Orlandeli)

Chico Bento já havia estreado na coleção de novelas gráficas da Turma da Mônica, a Graphic MSP, mas sem um resultado surpreendente. "Pavor espaciar", primeiro título do personagem dentro deste selo, é uma história interessante, mas que pouco marca o leitor. Em "Arvorada", Orlandeli consegue trazer o elemento mais caro às melhores obras da coleção: o tom poético. Aliado a um desenho de traço simples, mas que casa com o enredo, o resultado alcançado está dentre os melhores dos seus pares. Orlandeli aposta na figura quase mítica da avó de Chico, valorizando a experiência e sabedoria dos mais velhos. Além disso, tem sensibilidade o bastante para resgatar alguns fatos pouco conhecidos da vida do personagem, como a morte de sua irmãzinha Mariana. É um quadrinho para fãs e leigos; uma florada de ipê bem amarelinho surge a cada página de "Arvorada".

Os capacetes brancos (filme de 2016)

Com apenas 40 minutos, este documentário talvez seja o mais próximo que você conseguirá chegar de alguma verdade sobre a Síria. Dividida entre confusos partidarismos, sofrendo ataques de países que se aliam ou se afastam de determinadas causas, a única realidade inquestionável sobre esta nação hoje é a de que ela está exterminando sua população civil. O documentário "Os capacetes brancos" retrata um grupo de homens, destituídos de suas profissões originais neste país em destroços, que decidiram fazer parte de uma equipe de resgate. Retificando, "decidir" aqui é um verbo muito forte - quais são as outras opções possíveis, em um território em guerra, a não ser trabalhar diretamente no conflito, torná-lo rentável ou minimamente uma fonte de sobrevivência? Boa parte do filme acompanha os homens durante um treinamento na Turquia, durante o qual podemos conhecer um pouco mais desses personagens, suas inumeráveis perdas, suas ralas esperanças. Nas poucas tomadas feitas

Speech and debate (filme de 2017)

Adoro filmes sobre aulas de Produção de Textos, Debate, Oratória, enfim - gosto de confrontar o conteúdo que eu preparo com a visão de outros professores e alunos, ainda que fictícios. Logo, não é de estranhar que um longa intitulado Speech and Debate tenha atraído minha atenção. Para os desavisados, como eu, fica logo o aviso: não há nada de discurso e debate nesta produçãozinha adolescente extremamente sem graça. É um filminho horroroso, com atuações pífias, um pretenso musical com cantores desafinados, uma produção sobre escola que trata os alunos como incapazes e os professores como criaturas frustradas. Uma porcaria enlatada, que deve ser descartada facilmente por qualquer um que tenha bom gosto.

O hipster (Coleção Como Lidar)

A coleção Como lidar, que teve cinco lançamentos simultâneos pela Editora Intrínseca, deu o que falar (o que implicou também vendas expressivas). Com um sarcasmo bem grosseiro, o objetivo dos livros deste selo é oferecer uma espécie de manual de sobrevivência para adultos, com ilustrações vintage e uma certa cara de livro infantil. Sobre os hipsters , que não pertencem a nenhuma minoria e raramente são discriminados (afinal, estamos falando de uma moda/estilo de vida que envolve, necessariamente, um certo conforto social), a publicação chega até a divertir. No entanto, não me arrisco na leitura de nenhuma outra obra da coleção - prevejo ataques machistas e piadinhas sem graça quando o tema for a esposa ou o marido, por exemplo. Leitura de banheiro, estação de ônibus, metrô sem baldeações - nada demais, mas até que um pouquinho engraçadinho.

A rosa do povo (Drummond)

No primeiro poema do primeiro livro publicado por Drummond, já se anteveem ao menos sete temáticas que serão recorrentes ao longo de toda a sua obra. Com um tom quase poético/premonitório, o "Poema das Sete Faces" pode ser tomado quase como um guia de leitura para as obras do poeta. O complexo A rosa do povo , no entanto, foge um pouco a essa regra de ouro - mais extenso que boa parte da produção drummondiana, abarca cerca de catorze temas/enfoques/motes. A transição de uma temática a outra geralmente é feita com um poema que engloba os dois motivos, garantindo a coesão e organização do livro. "A rosa do povo" se inicia com uma discussão metalinguística que engloba alguns dos versos mais antológicos do mineiro: "Chega mais perto e contempla as palavras. / Cada uma tem / mil faces secretas sob a face neutra"; "As palavras não nascem amarradas, / elas saltam, beijam, se dissolvem". Em seguida, o eu lírico discute sua posição de gauche , desaj

O círculo (filme de 2017)

A distopia construída pelo filme é, talvez, uma das mais verossímeis - ao menos no contexto atual. Os limites entre a ficcional empresa The Circle e gigantes como Google e Apple é sutil, talvez restrita apenas a questões de tecnologia (a que ainda não temos acesso ou que ainda não foram divulgadas).  Emma Watson, geralmente uma atriz fraca, se encaixa bem no papel (talvez por ser acostumada a palestrar pelo mundo, é convincente quando chamada a desempenhar essa ação no longa). A fotografia é interessante, a trilha sonora é boa, o enredo prende a atenção. E, então, o que não dá certo? Talvez o formato. Mais um episódio da série Black Mirror do que um longa-metragem, o filme deixa muitas pontas soltas, costura fatos aparentemente aleatórios sem justificativas válidas, e deixa pouco espaço de imaginação ao espectador. Muito mastigadinho em alguns pontos, excessivamente solto em outros - nesse oscilar caminha o roteiro, que consegue garantir um filme interessante, mas não sensacional.