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Mostrando postagens de outubro, 2019

Os desafios da escrita (Roger Chartier)

Reunião de algumas palestras proferidas por Chartier na nossa Bienal de 2010, a obra é um conjunto interessante de reflexões sobre o livro e a leitura. O contexto que permeia os cinco artigos distintos que a compõem é pensar como se dá a leitura hoje - que hábitos sobreviverão e quais serão extintos com as novas materialidades do livro. Um ponto em que Chartier insiste ao longo de suas falas é que suportes diferentes causam mudanças muito mais profundas do que as que envolvem comportamentos superficiais dos leitores. Com a fragmentação do texto, a leitura por hiperlinks e imagens, o que está em questão é a própria função do livro (enquanto publicação de um texto em sua íntegra) em nossa sociedade. O último artigo da obra - Morte ou transfiguração do leitor? - torna essa questão bastante evidente. Se há uma década o autor não tinha respostas para essa intrigante questão, os avanços tecnológicos de hoje parecem tornar ainda mais complexo esse cenário.

A aventura do livro (Roger Chartier)

Publicada em 1998, é surpreendente ver o quanto esta obra do historiador francês Roger Chartier conseguiu traçar um panorama fiel da modernidade. Enquanto seu entrevistador desconfia de novas materialidades para o livro (indicando o quanto seria absurdo, por exemplo, levar um computador para a cama), Chartier já aponta para a possibilidade de uma tecnologia portátil, que permita a leitura em diferentes formatos, suportes e contextos. Além da previsão correta de futuro, é feito um interessante passeio pelos primórdios do livro. Acompanhado pelas belas imagens que ilustram a obra, o historiador vai nos mostrando o quanto a leitura é um hábito construído socialmente ao longo dos tempos. Um mimo para quem se interessa por qualquer área da editoração ou da história dos livros, a obra é de leitura rápida e fluida - mas nem por isso desprovida de vasto conteúdo.

Com a palavra, Arnaldo Antunes (filme de 2019)

Bastante despretensioso, o documentário é basicamente uma longa entrevista com Arnaldo Antunes.  Do conjunto, os pontos que mais me despertaram a atenção foram a história de formação dos Tribalistas (totalmente espontânea, sem a pressão de gravadoras) e o belo cenário natural em que o artista está imerso (em que a inspiração provavelmente não falha).  Não é um filme que me ajudou a gostar mais ou menos da obra do cantor/poeta/performer. Se não chega a ser ruim, igualmente não encanta.

Memória de editor (Salim Miguel & Eglê Malheiros)

Mais uma obra da coleção Memória do Livro, este pequenino volume traz uma interessante entrevista com os editores Salim Miguel e Eglê Malheiros. Um dos pontos de interesse do bate-papo é perceber como os editores se profissionalizaram botando a mão na massa; ao narrarem sua entrada no mercado, Salim e Eglê revelam o quanto os seus projetos partiram de boas ideias. Foi por meio delas que se dispuseram a aprender sobre gráficas, impressão, modos de publicação e divulgação...  O registro da conversa dá um panorama interessante de como era publicar no Brasil em plena ditadura - inclusive narrando a queima de livros e a prisão de Salim. E, quase meio século depois, a luta por divulgar a leitura continua.

América Latina para imbecis (filme de 2018)

Não sou usualmente o público-alvo para talk shows; no entanto, após assistir ao incrível Nanette , tentei reconsiderar minha indisposição com o gênero. Assim, minha expectativa em relação ao América Latina para imbecis era a de um programa que soubesse abordar, com ironia, os preconceitos que cercam a latinidade nos Estados Unidos (tal como Hannah Gadsby soube tão bem fazer em relação a questões de gênero). De fato, o monólogo de John Leguizamo apresenta informações históricas bem fundamentadas (inclusive com a leitura de trechos de vários livros sobre o tema, como As veias abertas da América Latina ). Contudo, para tornar o seu discurso mais próximo do tom da comédia, o artista abusa de vários recursos do pastelão: desde cenas de cueca a passinhos de cumbia no palco. Além do mais, ao defender sua latinidade Leguizamo não repensa os demais estereótipos de que faz uso: assim, exagera nas imitações de indianos, mulheres, negros e outras minorias que igualmente constituem a parcela opri

Ad astra (filme de 2019)

Filme bastante desigual, "Ad astra" tem um começo interessante - mas que não se sustenta. Grande parte do longa trabalha os problemas que o protagonista tem com seu pai, e que o fazem viajar por todo o Sistema Solar para resolver questões que poderiam ter sido mais bem trabalhadas em qualquer divã aqui na Terra. Fora as questões pessoais do personagem principal, há excessos bem hollywoodianos: cenas de explosões, lutas, ataques de animais geneticamente modificados... e o herói do filme a sair de todas essas ciladas sem nenhum arranhão. O que mais vale a pena na produção é o cenário inicial, no qual vislumbramos o que será da comercialização do espaço daqui alguns anos. No entanto, mesmo essa boa sacada fica incoerente: afinal, como sustentar uma crítica ao consumismo em um filme que é essencialmente comercial?

A vida passada a limpo (Carlos Drummond de Andrade)

Alguns poemas excelentes fazem valer a leitura dessa obra de Drummond: "Poema-orelha", "Especulações em torno da palavra homem", "A um bruxo, com amor". Entretanto, ao contrário de outros livros do poeta, neste não há uma unidade tão bem constituída ou a definição de temas poéticos que criem uma linha de abordagem mais clara. Os poemas são agrupados por algumas similaridades temáticas, mas que não bastam para definir mais fortemente o conjunto. Após o poema dedicado a Machado de Assis, por exemplo, há outro sobre o fim de um hotel - e, por mais que ambos se tratem de monumentos findos, o tom de cada um é bastante diferente. Alguns textos parecem remeter diretamente à amante do poeta, inclusive com algumas DRs expostas ao leitor. Enfim, ainda é Drummond, mas não é dos melhores livros do itabirano.

Rough Book (filme de 2016)

Filme que me agarrou pela sinopse, "Rough Book" não consegue cumprir todas as promessas que faz em seu mote inicial. Era para ser uma obra interessante sobre a educação na Índia, mas aposta na figura de uma professora convencional (que, após fazer um ou dois experimentos interessantes em sala de aula, conforma-se em ministrar seu conteúdo de forma expositiva). No geral, os personagens são bastante mal construídos, em um roteiro que fica igualmente cheio de pontas soltas. O enredo não convence, as atuações são fracas e a trilha sonora chega a ser risível, forçando tensão onde ela não existe. Não chega a ser um filme execrável, mas é perfeitamente descartável.

Out of Print (filme de 2013)

Quando pensamos nas inovações tecnológicas que cercam o ambiente do livro e da leitura, bastam poucos anos para que muitos dos discursos proféticos sobre o fim ou a continuidade do impresso fiquem defasados. Ainda que pouco mais de meia década tenha se passado desde o lançamento de Out of Print , já sabemos em que resultaram algumas das previsões em que a obra aposta. Das conjunturas que o documentário aborda, uma das que me pareceu mais interessante foi a que repensa o papel das bibliotecas no mundo contemporâneo. Se não precisamos mais de um ambiente físico para realizarmos nossas pesquisas, qual passa a ser a função desses locais? Um abrigo necessário caso as tecnologias falhem? Centros de cultura e debate? Museus do livro impresso? Outro ponto bem abordado no longa é a discussão sobre direitos autorais em tempos de novas materialidades para os conteúdos produzidos pelos autores. Como controlar não só a pirataria, mas também a divulgação das obras em meios diversos de distribuiç

Bacurau (filme de 2019)

Pouco conheço de cinema brasileiro, mas é difícil não sair da sessão de "Bacurau" sem acreditar que esta é uma produção bastante diferente do que se fazia até então. Talvez o contexto político corrobore essa visão, que pode ser equivocada; no entanto, o fato é que estamos diante de um filme que protesta e cria engajamento. O diálogo com as tradições literárias do real maravilhoso, do realismo mágico - e mesmo da distopia - é bastante forte na produção. Há uma oscilação entre os limites possíveis da realidade, que se reflete nas escolhas de fotografia e roteiro. Algumas cenas, aparentemente inverossímeis, são explicadas brevemente ao espectador, mas com destreza; assim, ao invés de nos fazer desconfiar da obra, nos faz imergir em um contexto de imprecisões e frágeis verdades. Com personagens arquetípicos e alegóricos, a narrativa consegue criar múltiplas camadas de significado em um roteiro bastante aberto a interpretações. Outro ponto que me chamou a atenção foi o retrato d

Era uma vez em Hollywood (filme de 2019)

Conheço pouco Tarantino, a ponto de ter me interessado por esse longa em específico mais por sua proposta de resgatar a história do cinema do que pelo estilo do diretor. Além disso, também queria ver mais uma vez o DiCaprio nas telas - um dos atores de que mais gosto de acompanhar a filmografia. Uma vez que não tinha grandes expectativas, o filme não me decepcionou; no entanto, também pouco me surpreendeu (e, quando o fez, foi mais pela atuação excelente dos protagonistas do que pelo roteiro). Para o público brasileiro, o filme apresenta o agravante de lidar com um contexto muito específico; quem não sabe nada sobre Sharon Tate perde o jogo entre ficção e realidade que é grande charme de toda a trama. O longa tem problemas com o politicamente correto, mas talvez consiga escapar a um julgamento mais sério por dois motivos: o primeiro é o de ser um filme de época, coerente com os valores defendidos então; o segundo é o fato de brincar com a factualidade dos eventos, criando um mundo pa

Autobiografia (José Luís Peixoto)

Antes de "Autobiografia", só havia lido de José Luís Peixoto o breve "Morreste-me" - excelente desde o título. Assim, por já haver tido um contato inicial com a escrita poética do autor, tinha altas expectativas em relação à obra em questão (que, apesar de intitulada como um gênero literário diverso, trata da vida e das publicações de José Saramago). Em certa medida, o livro de Peixoto tem uma instigante proposta estrutural, que é a de mesclar a vida do biografado com a própria vida de quem escreve. Para atingir esse efeito, brinca com a homonímia dos Josés com frequência - a ponto de o leitor não saber situar a que personagem alguns trechos fazem referência. Além disso, a obra conta com uma estrutura circular bem pensada, daquelas que gerariam o desejo, no leitor, de retomar a narrativa assim que finalizasse a leitura. No entanto, além da vontade que me faltou para reler a obra, também quase me faltou a paciência de terminá-la. Se o projeto macro do livro é bem o