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Mostrando postagens de setembro, 2019

Novos caminhos da leitura (filme de 2019)

Documentário informativo, consiste basicamente em uma série de entrevistas com pessoas que descobriram outras formas de abordar a leitura, com foco no uso de tecnologias. Assim, booktubers , instagrammers  e outros personagens da era digital são convidados a refletir sobre o que nos faz ler hoje e como é possível incentivar esse hábito. Além dos divulgadores virtuais, a fala de editores, livreiros e autores ajuda a dar consistência ao discurso que se produz em torno aos livros. Se, por um lado, não se trata de nenhuma grande novidade, por outro lado o filme não deixa de construir um panorama interessante sobre a leitura nesse início de século.

Menino de engenho (José Lins do Rego)

Uma das graças das obras de José Lins do Rego é a sua verossimilhança. Muito antes da onda da autoficção, o autor já esboçava em seus livros limites bastante difusos entre a própria biografia e a narrativa de suas histórias. Assim, tem pleno conhecimento do cenário que descreve e que pauta a sua escrita. "Menino de engenho" é o romance de estreia do autor, com várias características que se manteriam ao longo de sua carreira literária: além da mescla com a vivência pessoal, há o cenário dos engenhos, o contexto do ciclo da cana-de-açúcar e a aposta em um estilo bastante claro, direto, sem maiores preocupações com uma suposta literalidade. Sem sutilezas, o livro descreve de maneira dura o cotidiano dos engenhos. Assim, o leitor tem acesso tanto a cenas de zoofilia quanto a descrições cruéis do abismo entre as classes abastadas e a dos empregados do campo; afinal, há meninos de engenho dentro da casa-grande e fora dela.  

Hannah Gadsby: Nanette (filme de 2018)

Aparentemente despretensioso, em princípio o filme não seria nada mais do que a filmagem de um talk show , de mais ou menos 1 hora de duração. No entanto, são muitas as surpresas que essa pequena obra de arte guarda - capazes de conquistar até o público mais avesso ao gênero stand up  (dentre o qual me encaixo). O que Hannah Gadsby faz em seu discurso, sem deixar de divertir a plateia, é lançar reflexões profundas tanto sobre o gênero textual (a comédia) quanto sobre o sexual (uma vez que se define como lésbica). E, nessa proposta ousada de desconstruções, conduz questionamentos incômodos e agudos sobre ambas as questões. Ainda que atenda à expectativa inicial de um talk show , com bons chistes, o que a comediante australiana faz é dar um espetáculo retórico. Com um discurso emocional, angaria o pathos do público para em seguida capturá-lo pela racionalidade. Sua argumentação é absolutamente bem estruturada, a ponto de conseguir subverter completamente as estruturas do gênero coméd

Interestelar (filme de 2014)

Ao reassistir ao filme meia década após seu lançamento, tive a sensação de enfim compreendê-lo com mais profundidade. Há cinco anos, a proposta da trama tinha me parecido ingênua, já que busca uma explicação sentimental para validar as teorias científicas que coloca em evidência. No entanto, ao ver hoje o quanto a falta de humanidade e o academicismo geraram consequências funestas no campo da ciência, tenho de me render à capacidade de visionário do diretor. Uma das cenas iniciais da obra é a da filha do protagonista sendo recriminada na escola por acreditar que o homem, de fato, pisou na Lua. Em outra parte do filme, vemos cientistas tendo de se esconder em um galpão em busca de soluções para a evidente catástrofe ambiental - afinal, para a população investir em ciência é um desperdício de dinheiro. C omo não relacionar essas prévias ao culto da ignorância que vemos em nossos dias? A forte relação entre a ciência e a literatura é outro dos pontos que ficou evidente para mim apenas

Peixe grande (Daniel Wallace) + filme de 2003

Com um título que remete às fabulosas histórias de pescador, "Peixe grande" é, de fato, uma homenagem à capacidade humana de criar grandes narrativas. Situada no entrelugar dos contos para crianças e da memória de vida de um adulto, é uma obra que atende bem a públicos diversos - ou que, ao menos, consegue recuperar um pouco do elemento fantasioso da infância com nostalgia. Tanto o livro quanto sua versão cinematográfica, por mais que engajem o receptor na trama, não envelheceram bem (ainda que se tratem de produtos já do século XXI). No caso do impresso, algumas alusões a mulheres não são nada lisonjeiras; além disso, há um adultério que é incorporado com naturalidade à ideia de família feliz, daquelas de comercial de margarina. No caso da adaptação para as grandes telas, é particularmente ofensivo o modo como os orientais são retratados em algumas cenas. Ainda que o personagem tenha a desculpa do contexto histórico da Grande Guerra, as ironias e ridicularizações feitas

Tesouros (Bianca Pinheiro) - Graphic MSP

A segunda publicação de Bianca Pinheiro no selo Graphic MSP pode ser lida de forma isolada, ainda que faça referências à obra "Força", lançada anteriormente. A narrativa é bem amarrada e conta, mais uma vez, com o traço delicado da artista. Ainda que tenha gostado da experiência de leitura, achei o tom da obra muito próximo ao das histórias do gibi. Talvez tenha faltado um pouco de profundidade na abordagem dos temas, uma vez que a graphic novel  pressuporia um público mais adulto. Entretanto, ainda com a ressalva, vale o entretenimento que proporciona.

Esse ofício do verso (Jorge Luis Borges)

Conheço bem o mito de Jorge Luis Borges - um dos escritores latino-americanos mais galardoados -, mas tenho a sensação de saber bem pouco de sua obra. Talvez essa impressão derive do fato de a produção do argentino ser tão vasta: de poesia a conto, de crônica a novela, de ensaio a recriação de outras narrativas. Ademais de ter escrito em diversos gêneros e contabilizado um número significativo de páginas em sua produção reunida, aparentemente tudo o que Borges escreveu é digno de fazer parte do cânone. Dessa forma, mesmo que já tenha lido algo do argentino, sempre fica a sensação do quão pouco o conheço (e do quanto ainda tenho a desvendar). "Esse ofício do verso" é um livro belíssimo, que pode servir inclusive de porta de entrada à produção do escritor. Nele, são reunidas algumas palestras em que discorre sobre temas tão complexos e apaixonantes como a função social da poesia, a preservação do espírito poético, a necessidade de uma épica moderna e a sonoridade dos versos.

Otelo (Shakespeare)

Este é um ano em que, por motivos diversos, me encontrei com a produção de Shakespeare em diversos contextos. A leitura de Otelo, feita em um dia (entre viagens de ônibus e metrô, antes de aula sobre a peça) foi um dos meus mais recentes contatos com o bardo inglês. A proposta de entendimento do texto, alinhada à da aula, era desvendar possíveis intertextualidades que derivaram deste famoso drama familiar de Shakespeare. Aliás, essa é uma das características que marcam "Otelo": a tragédia do ciúme e intriga subsiste por si só, ao contrário de outras peças do autor, em que há um rico contexto histórico ligado ao drama vivido por famílias da nobreza. No entanto, o olhar mais atento às relações interpessoais do que ao panorama que as circunda de modo nenhum torna as temáticas abordadas menores. Assim, pautas abordadas em Otelo  reverberam até nossos dias, adaptadas e relidas das mais diversas formas: a traição de um amigo, a desconfiança do ser amado, o amor por alguém mais j

Sobrevivendo no inferno (Racionais Mc's)

Transformada em livro após a divulgação das obras exigidas no vestibular da Unicamp, "Sobrevivendo no inferno" tem caráter multimídia. Ainda que conte com outros elementos que ajudam a contextualizar a importância do álbum (como o excelente prefácio), é uma leitura que não se sustenta sozinha. Ao entrarmos em contato com as letras, a curiosidade natural é ir atrás das músicas - assim, o livro atua como um complemento e não como o objeto principal. Com o panorama propiciado pela publicação, pude ver o quanto se trata de um produto cultural de relevância (o que justifica sua inclusão na lista do vestibular), contextualizador do racismo e dos discursos que o circundam. Por outro lado, o fato de o CD ser do fim dos anos 1990 também traz algumas possibilidades de interpretação que, mesmo sendo anacrônicas, têm a sua importância. O tratamento dado às figuras femininas é um dos pontos de debate, já que está bem longe do sentimento de irmandade e paz defendido nas letras. Dessa f

Uma viagem pelos países que não existem (Guilherme Canever)

Guilherme Canever é um dos meus viajantes preferidos - ainda que seus roteiros pelo mundo sejam tão diferentes dos meus, sua abordagem sobre o tema é sempre enriquecedora. Um dos pontos que diferencia seus relatos de viagem é a rejeição aos estereótipos que cercam os países (ou os não países, como os abordados neste livro). Na lista de países não reconhecidos oficialmente e que foram visitados por Canever, estão Transnístria, Kosovo, Somalilândia, Árabe Sarauí, Chipre do Norte, Palestina, Nagorno-Karabakh, Abecásia, Ossétia do Sul e Taiwan. Sobre todos eles, há fatos e informações que surpreendem o leitor, já que ou não se sabe nada sobre eles (como Transnítria) ou só se tem acesso a visões prontas e repetidas pela mídia (como no caso da Palestina). Uma das impressões que mais me marcou durante a leitura foi descobrir recantos  do mundo ainda agarrados à ideia da União Soviética, com homenagens a líderes e manutenção de estruturas dos anos 1990. Assim, pude observar o quanto a visão

Makers, a nova revolução industrial (Chris Anderson)

Livros que trabalham as novas tecnologias tendem a ficar rapidamente defasados - no entanto, ainda que publicada em 2012, a obra de Chris Anderson consegue sustentar o interesse do leitor quase uma década depois. Um dos motivos que levam a esse resultado é o fato de a obra trabalhar com prospectos para o futuro próximo (alguns dos quais já se concretizaram). Assim, mesmo que não se trate de um livro isento à passagem do tempo, tem um prazo de expiração um pouco maior. O panorama construído pelo autor é muito interessante pelo fato de ser calcado na história. Dessa forma, a metodologia maker não é analisada como uma grande inovação recente da humanidade, mas sim como um processo que já existia e que ganhou forte apoio das tecnologias. O autor abstém-se de tocar em alguns pontos polêmicos - como a substituição do homem pela máquina e o uso de mão de obra escravizada -, mas não chega a maquiar a realidade. Em algumas passagens, deixa claro ao leitor por que acredita na revolução maker

Jude, o obscuro (Thomas Hardy)

Folhetim do século XIX, "Jude, o obscuro" coleciona qualidades e defeitos típicos do modo de publicação. Sua premissa básica é instigante e dialoga, surpreendentemente, com o leitor brasileiro do século XXI - assim como Jude, o protagonista, que passa a vida sonhando com uma universidade à qual não terá acesso, nós também assistimos desolados ao fim das bolsas de pesquisa e incentivos ao estudo no Brasil. Outra qualidade notável do romance é a sua galeria de personagens complexos e a criação de um panorama bastante abrangente do contexto em que a narrativa se passa. Romance de fôlego (com cerca de 500 páginas), tem a preocupação de situar o leitor na história ao invés de propor lacunas às quais ele teria de resolver. Apesar dos elementos que sustentam a obra, ela não consegue se afastar do efeito rocambolesco da trama. Com muitas reviravoltas e um tanto de melodrama, o livro acaba correspondendo a alguns estereótipos da literatura de folhetim do XIX. Ainda que o início in

Beasts of Burden: cães sábios e homens nefastos (Evan Dorkin & Benjamin Dewey)

Continuação da saga narrada no primeiro volume, o livro é um compilado de aventuras de uma matilha feiticeira. Repetindo o sucesso da obra anterior, os autores apostam em uma caracterização bastante interessante dos personagens - capaz de cativar qualquer amigo de pet -, além de contar com piadas rápidas bem eficazes. Apesar de bastante sangrento, é um quadrinho que tem sua leveza. Não é o suficiente para tirar o sono de ninguém - mas garante uma boa horinha acordado, em nome de uma prazerosa leitura.

A cinza das horas (Manuel Bandeira)

Foi pela leitura de Manuel Bandeira que aprendi o tom mais pausado, desconfiado e cuidadoso que o contato com o gênero poético exige. No entanto, o fato de ter sido o poeta estudado em três disciplinas diferentes no início de minha graduação fez que eu me afastasse de sua obra, buscando descobrir por conta própria outras vozes na poesia brasileira. Quase quinze anos depois, um trabalho paralelo me levou a redescobrir o que Manuel Bandeira tinha a dizer. Superado o "ranço" de análises exaustivas sobre os mesmos poemas, deparei-me com textos que ainda desconhecia - e que se abriram em múltiplas possibilidades de leitura. Primeiro livro publicado pelo autor, "Cinza das horas" está longe de ser uma obra redonda ou revolucionária no contexto de seu lançamento. Ainda com traços das escolas anteriores - seja o Romantismo, seja o Simbolismo ou mesmo o Parnaso -, antecipa algumas das discussões sobre a forma do poema que seriam escandalizadas na Semana de 1922. Não é um