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Mostrando postagens de dezembro, 2020

Unbroken (filme de 2014)

Como biografia, o filme conta uma história de vida surpreendente: como um atleta olímpico passa mais de um mês no mar e é resgatado justamente por seus inimigos, em plena Segunda Guerra. Assim, durante todo o longa, somos apresentados a uma série de percalços pelos quais o protagonista passa, sem nenhum alívio em sua dura jornada. Por mais que o herói dessa história seja um imigrante italiano, o filme não se exime de pregar o bom e velho nacionalismo branco estadunidense. Os japoneses são retratados como vilões e os estadunidenses, como mocinhos. Há uma ou outra cena que subverte essa lógica, mas o que predomina é um viés ideológico muito bem demarcado, que usa uma boa história de vida para divulgar os valores de uma suposta nação vencedora. E é claro que o protagonista vira pastor no final, por ser temente a Deus, o que faz do filme um ótimo aliado de qualquer coach.

A Little Bit of Heaven (filme de 2011)

Filmeco de Sessão da tarde, conta com alguns pontos positivos: a ideia de Deus como uma mulher negra, a morte como uma celebração e a preocupação com a felicidade do outro acima da própria vida. Além disso, há o Gael, ainda que em um papel bem fraquinho. No entanto, mesmo que seja evidentemente um filme com uma proposta coach de valorização da vida, há um ponto que permeia todo o enredo e que me incomodou demais: a ideia de consumo como ponto alto da existência. Por mais que a ideologia venha disfarçada em um frasco bonitinho, a ideia que fica é que o mundo perde uma cliente com a morte da protagonista (e não uma história de vida).

Ideias para adiar o fim do mundo (Ailton Krenak)

Composto de três ensaios bastante curtos, o livro compila reflexões de Krenak proferidas em palestras e em entrevista. Assim, a própria forma da obra mostra esse trânsito delicado do oral para o escrito, das reflexões de uma cultura indígena específica para a nossa massificação cultural homogeneizada. Os pontos que Krenak aborda são poucos, já que não se trata de apresentar um acúmulo de ideias e referências para legitimar uma tese. O que ele tenta nos fazer enxergar, por meio de sua filosofia arraigada à terra, é o quanto deixamos de ser natureza para ser produto. E como, nesse contexto, o fim do mundo é inevitável: o que nos resta é estar preparados para ele, preservando ao máximo nossa subjetividade.

Tell me how it ends (Valeria Luiselli)

Uma das indicações literárias que mais me interessou em "No leer", de Alejandro Zambra, foi o nome da mexicana Valeria Luiselli. Por uma questão de facilidade de acesso, acabei iniciando a descoberta de sua obra por esse pequeno livro de não ficção, em que a escritora conta a sua rotina como intérprete de crianças refugiadas à procura de abrigo nos Estados Unidos. O livro não conta com reflexões filosóficas aprofundadas ao máximo e nem com uma linguagem literária apuradíssima: seu objetivo é apresentar as 40 perguntas que são feitas às crianças que conseguem atravessar a fronteira. Apesar desse caráter bastante objetivo, consegue ser um livro provocador, por desvelar uma realidade bastante cruel a que crianças e jovens são submetidos, todos os dias. Algumas das situações relatadas por Luiselli já tinham me sido apresentadas por filmes ou músicas, mas me pareciam tão inverossímeis que só me dei conta de que são fatos verídicos pelo contato com essa obra. Dois exemplos são os v

O dia em que a poesia derrotou um ditador (Antonio Skármeta)

Já assisti a quatro filmes excelentes que se inspiraram na obra de Skármeta: "O carteiro e o poeta", "No", "El baile de la victoria" e "O filme da minha vida". Assim, sempre tenho a impressão de estar lendo um roteiro quando se trata da obra desse autor chileno (ainda mais porque, nos três casos, minha experiência com o cinema precedeu o livro). "O dia em que a poesia derrotou um ditador" é um livro que indicaria para adolescentes, com certeza (até porque um de seus protagonistas é um jovem aprendendo a lidar com as desventuras políticas de seu tempo). No entanto, para além de literatura juvenil e de roteiro de cinema, há pouco que me interesse no livro enquanto literatura. A falar a verdade, há inclusive alguns tons machistas na leitura que me fazem preferir o filme; afinal, ainda que se proponha progressista, é uma obra de um autor muito apegado ao século XX.

Minha vida de rata (Joyce Carol Oates)

Uma crítica conservadora sobre as iniciativas que valorizam a escrita de mulheres, em nosso tempo, se baseia no fato de que muitas personagens são construídas em uma espiral de desgraças, como se tentassem angariar a simpatia do leitor para a causa feminista atravessando todo um mar de sofrimentos. Ainda que não goste de me identificar com visões pouco progressistas, confesso que essa ideia me veio à mente durante a leitura de "Minha vida de rata". Se o romance de JCO tivesse acompanhado a protagonista até o início da vida adulta, apenas, o recorte me parecia mais louvável. No entanto, depois de mostrar sua personagem sendo acusada injustamente, a autora ainda nos faz ver as confusões em que sua protagonista se mete por vontade própria, como se fosse atraída para os infortúnios. Foi uma leitura que não só me cansou, como quase me fez torcer contra a protagonista. Claro que esse sentimento é intencional, uma vez que os limites de julgamento do leitor estão em xeque durante a l

Paul Gauguin: viagem ao Taiti (filme de 2017)

O filme dá conta de um recorte bastante específico da história de Gauguin, mas talvez um dos mais famosos. Ainda que haja vários episódios dignos de menção na vida do pintor (como a famosa briga com Van Gogh, que culminou com a orelha decepada), é na viagem ao Taiti que se concentra o elemento definidor de boa parte de sua produção mais conhecida. Não há grandes diálogos ou cenas de muita ação durante o enredo, pelo contrário: na soma das desgraças que se abateram sobre Gauguin durante sua viagem, parece que pouco sobra para ser dito. Dessa forma, é uma obra com mais silêncios do que falas, mais subentendidos do que fatos. Apesar de uma nota fraca no Imdb (5,9), alguns aspectos do filme me pareceram muito bons: além da atuação ótima de Vicent Cassel, o fato de os diálogos se darem em taitiano é bastante louvável. Além disso, a figura do artista não é romantizada, tampouco demonizada: é um retrato exótico, mas com elementos dignos de apreciação.

No leer (Alejandro Zambra)

Há um certo tom de cotidianidade, de relato despretensioso, que me faz devorar as obras de Alejandro Zambra sem nem me dar conta de que o faço. Assim, depois de já ter lido tudo o que havia sido publicado dele no Brasil, me deparei com este conjunto de ensaios ainda inédito em português. Conforme fui adentrando "No leer" (apesar do aviso do título), consegui perceber também o porquê de a obra ainda não ter dado as caras em uma tradução por aqui: muito do que Zambra aborda são chilenismos para nós – referências não só a autores, mas ao modo de vida e à geografia de seu país. Assim, ainda que passe longe do nacionalismo, é um livro para quem já conhece um pouco do ambiente de seu autor, bem como dos ambientes culturais de que deriva. Gostei de conhecer um pouco mais da faceta de crítico do autor (mesmo que me soasse um pouco marrento em alguns trechos). Os ensaios que falam sobre leitura e escrita, inclusive a dos próprios contos e novelas, são instigantes. É um tom mais verdad

O olho da mulher (Gioconda Belli)

Depois de me apaixonar pela autobiografia de Gioconda Belli, quis ir atrás de sua produção como poeta; afinal, como a própria escritora nos conta, ela não sabe o que veio primeiro em sua vida: a poesia ou a revolução. Ler os versos de uma poeta guerrilheira e feminista teria de tudo para ser uma experiência intensa de leitura... mas não o é. O único traço que havia me incomodado na autobiografia é a temática principal de sua poesia: o amor romântico e devotado ao homem que se ama. Ainda que um ou outro poema seja mais potente (geralmente, aqueles que relacionam o elemento da água com o erotismo), no geral é um conjunto de poemas que deixa a desejar.

Querido Scott, querida Zelda (F. Scott Fitzgerald & Zelda Fitzgerald)

Após ler um conto de Scott Fitzgerald e seu romance "O grande Gatsby", resolvi embarcar ainda este ano nas minúcias de sua biografia: primeiro, assisti à série Z; e, agora, terminei este volume de cartas parado há uma década na minha estante. A minissérie sobre Zelda Fitzgerald, apesar de contar com uma produção excelente, pouco me atraiu ao romantizar os dramas de um casal rico, branco e estadunidense na época do American Way of Life. No entanto, o recorte que a temporada única faz dá conta apenas dos anos iniciais de Scott e Zelda. Imagino que, se prolongada, a série me interessaria mais – e chego a essa conclusão pelo meu percurso de leitura das cartas de ambos. A correspondência escrita durante os anos dourados – quando tudo fluía bem na vida dos Fitzgerald e, ainda assim, eles conseguiam cavar seu próprio fosso – foi a que menos me cativou. Como bons personagens trágicos, são os anos de perda e luto que tornam as figuras de Zelda e Scott emblemáticas. A maior parte das c

El país bajo mi piel (Gioconda Belli)

A autobiografia de Gioconda Belli, poeta e guerrilheira, é uma das mais provocadoras que já li. Assim, foi não só uma ótima entrada para a literatura nicaraguense (da qual nada conhecia), como para a explosiva história recente do país. E, para coroar a experiência, tudo é narrado por uma mulher com bastante consciência do seu papel de classe e de gênero. A poesia de fato de Belli (que li na sequência) não me conquistou. No entanto, o que a sua prosa tem de poético é encantador. O começo do livro é um dos melhores que já li e nos traga história adentro, sem que tenhamos vontade de parar. Além disso, os recurso de construir uma biografia sem uma sequência temporal linear é outro dos atrativos do livro, que dessa forma se apresenta como um interessante quebra-cabeça de fatos e personagens. Tudo nos cativa: as paixões da poeta, sua descoberta da poesia, a história da Nicarágua e seus personagens históricos, a linguagem sucinta e bela... Ainda que a narradora apresente suas falhas e erros,

Jurassic World II (filme de 2018)

Em uns quinze minutos de exibição, já dá para ver que o checklist de blockbuster foi completado: casal tentando se reconciliar, criança investigadora, velhinho bonzinho à beira da morte, vilão ganancioso, personagem medroso para criar o alívio cômico, carro que não liga na cena de ação, pianinho durante a cena triste, estadunidenses com a responsabilidade de salvar o mundo etc. E dinossauros.

Le pendentif (Sylvie Lainé)

Uma das piores partes da aprendizagem de línguas, para mim, é a passagem pelos livrinhos produzidos para estudantes do nível A1/B1. No entanto, como nem sempre consigo substitutos possíveis para eles (como bons livros de literatura infantojuvenil ou HQs), acabo me rendendo à praticidade – que raramente vem atrelada a um bom enredo ou a um conjunto de informações interessantes. "Le pendentif" não é de todo mal, mas passa longe de ser um livro indispensável (ao menos no caso de quem não está ainda engatinhando na língua).

Beasts of Burden v. 3 (Evan Dorkin e Jill Thompson)

Se o primeiro volume de Beasts of Burden me pareceu uma boa mescla de gênero história de terror com o subgênero histórias de cachorrinhos, essa boa primeira impressão foi se diluindo ao longo dos volumes subsequentes.  Os enredos muito fragmentados, que se resumem a uma luta com um ser sobrenatural, acabam enjoando depois do contato inicial. Ainda que os personagens sejam uma graça, não bastam para sustentar a história sozinhos.

Todas as manhãs do mundo (filme de 1991)

Retrato de duas personagens históricas, o filme nos apresenta os compositores Monsieur de Sainte Colombe e Marin Marais. Mesmo para quem não conhece ambos (como era o meu caso), o mero interesse por música e pela estética do século XVII é o suficiente para manter o interesse pela narrativa. Trata-se de um filme lento, ainda que haja vários acontecimentos e reviravoltas na trama pessoal dos personagens. No entanto, o objetivo vai além da mera biografia dos protagonistas; o que está verdadeiramente em jogo é a sua arte, o que exige do espectador um olhar mais contemplativo (bem como um ouvido atento às diversas apresentações musicais que se sucedem ao longo da obra). A fotografia é belíssima e nos dá a impressão de estar diante de um quadro de época o tempo todo. Se congeladas, algumas cenas são verdadeiras naturezas mortas, pinturas da corte ou retratos que trabalham belamente o claro-escuro. 

O livro das semelhanças (Ana Martins Marques)

Nem sempre consigo criar laços com a poesia contemporânea; talvez a poesia que já não converse mais tão diretamente com o meu próprio tempo se oferte de maneira menos enigmática, com muitos de seus enigmas históricos já resolvidos. No entanto, entre minhas tentativas de conhecer mais vozes de agora, o reconhecimento com a poética de Ana Martins Marques foi quase instantâneo. É, sem dúvida, minha poeta contemporânea preferida. Seu Livro das semelhanças  é dividido em quatro seções ("Livro", "Cartografias", "Visitas ao lugar-comum" e "O livro das semelhanças"). Na primeira, a autora faz uma releitura das partes do livro do ponto de vista poético (a orelha, a capa, o colofão etc.). Para aficionados do objeto livro, é uma metalinguagem deliciosa. Em Cartografias , o ressignificado da vez é o mapa – bem como a distância, a proximidade, o espaço físico em que estamos e em que situamos nossas vozes. Visitas ao lugar-comum  é um exercício poético diverti

Hibisco roxo (Chimamanda Ngozie Adichie)

Livro de estreia da aclamada escritora Chimamanda Ngozie Adichie, Hibisco roxo é uma leitura violenta. Desde as primeiras páginas, somos apresentados a uma família disfuncional, mas que é vista como exemplar na sociedade em que está inserida. Ainda que haja fortes laços de ternura entre os dois irmãos e a mãe, eles são a todo momento esgarçados pela figura austera e opressora do pai. Se, por um lado, a escolha de apresentar personagens jovens como vítimas pode parecer um meio fácil de ganhar a simpatia do leitor, por outro lado há decisões mais complexas na narrativa tecida pela autora. Uma delas é construir o grande vilão de sua história como um tirano no ambiente doméstico e um mártir progressista no ambiente social. Assim, a escrita de Chimamanda é incômoda o tempo todo: porque sabemos que haverá mais cenas de violência e, mesmo assim, temos consciência de partilhar dos mesmos ideais políticos de quem a exerce. Além disso, nem sequer as vítimas são dóceis; além de nos irritarem com

Sapiens (Yuval Noah Harari)

A academia nos ensina a ser especialistas; quanto maior o nível de ensino, mais desenvolvida é a nossa percepção de olhar a minúcia, o detalhe, e tentar entender como as particularidades se encaixam no todo. Nesse contexto, a abordagem generalista costuma ser malvista: afinal, o panorama nunca contemplará a razão de ser de cada elemento. O famoso livro de Yuval Noah Harari vem questionar esses parâmetros; não se trata apenas de um recorte, mas sim de uma tentativa de entender motivos e razões que guiam a sua humanidade desde o começo do Homo sapiens . Claro que há superficialismos e simplificações; ainda assim, o autor consegue demonstrar, com perspicácia, teses criativas – que passaram despercebidas pela visão habitual dos acadêmicos. Como todo livro que propõe um panorama histórico, deve ser lido com cuidado; afinal, as afirmações generalizantes próprias de sua estrutura não devem ser aceitas como verdades absolutas, mas como ponderações que não englobam muitas características partic