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Mostrando postagens de novembro, 2020

O começo da vida - parte 2 (filme de 2020)

Quando falamos em educação, dificilmente pensamos no meio ambiente como algo além de um conteúdo de avaliação ou, no máximo, um item para constar no PPP. Poucos educadores são reconhecidos por verem, nas crianças, uma parte da natureza – que precisa, consequentemente, estar rodeada de terra, água, ar, plantas e animais (e não ficar confinada a uma caixa de cimento repleta de telas). Nesse contexto, o filme O começo da vida  vale mais do que muita palestra sobre pedagogia por aí. Os fatos de que ele trata são poucos (e sempre respaldados por uma visão científica); em suma, a ideia defendida é que o contato com o meio ambiente é uma prerrogativa para um futuro possível. Se as crianças não sobem em árvores, não veem animais na natureza, não sabem de onde vêm os alimentos, não terão por que lutar. Afinal, como exigir delas que preservem um meio ambiente que sequer conhecem? Além da beleza de reunir tantos discursos e imagens potentes, o documentário ainda tem a força de trazer a voz das cr

O Grande Gatsby (filme de 2013)

A megalomania nas produções de Baz Luhrman (diretor de Romeu + Julieta e Moulin Rouge ) não destoa em nada do tom de O grande Gatsby ; assim, ainda que a releitura para o cinema use elementos contemporâneos (como a ostentação do rap ), acaba sendo uma produção bastante fiel ao enredo original de Fitzgerald.  Os efeitos pouco realistas de  videogame  não me encantam, mas podem ser mais facilmente aceitos no contexto da obra em que se inserem.  A escolha de Tobey Maguire talvez seja um ponto a ser questionado; afinal, por meio de sua atuação, o enigmático Nick Carraway vira quase um bobo na corte de Jay Gatsby. Contudo, a presença de DiCaprio no elenco ajuda a contrabalançar essa dinâmica da obra, dando-lhe o ar de dramaticidade necessário.

Destino adiado (Jean-Pierre Gibrat)

O timing de lançamento de Destino adiado  foi ideal: afinal, se trata de uma obra que discute a reclusão e o distanciamento social forçados. O mote da história é a deserção de um soldado francês no final da Segunda Guerra, que resolve se esconder em um imóvel abandonado enquanto espera pelo término do conflito. Trata-se de uma narrativa singela, sem grandes feitos ou frases marcantes. No entanto, é surpreendente como o retrato quase bucólico da guerra em uma cidade do interior da França consegue nos cativar – sem deixar de ser revelador na construção dos personagens, afiliados a ideologias opostas. Para coroar a experiência, o traço lindo das ilustrações só reforça a beleza da obra.

Tudo de bom vai acontecer (Sefi Atta)

Vi alguns leitores comparando esta obra de Sefi Atta à tetralogia napolitana, de Elena Ferrante. A comparação até me parece justa, desde que tenhamos em mente que a obra de Sefi Atta foi escrita uma década antes da de Ferrante – apenas não teve a mesma visibilidade por motivos óbvios de como formamos e mantemos um cânone literário eurocêntrico. O livro foi me ganhando aos poucos. No entanto, o desinteresse que a protagonista causa ao início também é calculado pela autora; como uma boa narrativa de formação, tem como objetivo mostrar as mudanças pelas quais a personagem passa e como, a partir delas, consegue reler os fatos de seu passado. Conforme a protagonista se enxerga como feminista e consegue se libertar de algumas amarras sociais (bem como incentiva sua melhor amiga a fazê-lo), o discurso que perpassa a ficção é encantador – e remete bastante às famosas palestras de Chimamanda, que abriu o caminho ocidental para a descoberta de uma literatura nigeriana incrível.

Las 101 cagadas del español (María Irazusta Lara)

O título irreverente consegue maquiar o que é, de fato, um manual de gramática. Contudo, a intenção é boa: além de apontar erros no uso da norma formal, o livro discute palavras obliteradas pelo tempo, origens desconhecidas de expressões populares e "espanholismos" interessantes. Por se propor a ser engraçado, por vezes o manual acaba incorrendo em uma ou outra piada muito da sem graça. Aparentemente, as discussões sobre etnia e gênero não chegaram à Europa: afinal, chistes racistas e sexistas não são ocorrências isoladas ao longo do livro, ainda que sejam poucas.  

Lord of the flies (William Golding) + filme de 1963

Conheci a história clássica do livro de Golding por meio do cinema; não sabia nada sobre ela até assistir ao filme produzido em 1963. São mais de 8 anos que separam essa experiência do meu contato com o livro: agora, ainda que já soubesse o que se passaria na ilha, minha experiência de leitura só foi potencializada por já conhecer, de antemão, o quanto essa narrativa é instigante e provocadora. Alguns pontos que ficaram ressaltados durante a minha leitura/visão do filme dialogam diretamente com o contexto de 2020: como não sabemos sobreviver a uma catástrofe, o quanto acreditamos na versão da história que é mais confortável para nós e como até os bons e justos (Piggy) também são falhos, além de frágeis. Além disso, é curioso observar que Simon, julgado como louco pelas demais crianças, é o que mais se aproxima da verdade sobre a ilha. A leitura é arrasadora e sabe construir muito bem o ambiente em que as crianças interagem, dialogam e amadurecem (para o bem e para o mal). Quanto ao fil

Uma mensagem de esperança (Tom Michell)

O livro narra como um professor inglês, em uma espécie de intercâmbio na Argentina, levou um pinguim do Uruguai até uma escola de Buenos Aires, onde passa a criá-lo. Em parte, há que se evitar o anacronismo na leitura do relato – afinal, nossas políticas e meios de contato para socorrer um pinguim do vazamento de óleo são muito diferentes hoje. No entanto, é difícil (e talvez não de todo desejável) deixar de julgar o narrador por sua visão estereotipada e preconceituosa da América do Sul. Confesso que cheguei a ficar feliz com a surra que o inglês tomou dos militares (mas que não o fez ficar menos tonto em relação à política argentina). Enfim, a leitura compensa apenas no que se refere ao pinguim – este sim um personagem que vale a pena.  

Afirma Pereira (Antonio Tabucchi)

A premissa de Afirma Pereira  é uma das que mais me encanta na literatura: o personagem que se apresenta ao seu próprio autor, reivindicando direitos e querendo rever o seu ponto de vista na história. Ainda que se inspire em Pirandello, a proposta de Tabucchi é bastante diferente: afinal, muito se fala do apoio do dramaturgo italiano ao fascismo. Assim, ainda que dialogue com uma cultura com bases políticas diversas, o que Tabucchi oferta ao leitor é a ideia do quanto não é possível desvincular a arte do contexto ideológico em que se insere. O livro, ainda que seja curto, tem uma estrutura bastante repetitiva. Mesmo que não se trate de um recurso estilístico sem propósito, acaba deixando a narrativa um tanto previsível. No entanto, é justamente essa previsibilidade que culmina em um final intenso e surpreendente – além de catártico.

O grande Gatsby (F. Scott Fitzgerald)

Se não fosse pelo excelente posfácio da edição da Antofágica, teria saído da leitura de O grande Gatsby sem nenhuma pista do porquê de este livro ser considerado um clássico, quando não a obra máxima de Fitzgerald. Com as indicações do estudo, consegui rever a leitura da obra como uma alegoria da história dos Estados Unidos. Sob essa perspectiva, o livro cresce em significados possíveis.  Entretanto, desvinculado de uma macroanálise, o romance em si não me fisgou. Apesar de algumas boas frases de efeito, pinceladas aqui e acolá, no geral é um romance muito centrado nos problemas de gente branca e rica. Uma vez que o mote não me causa empatia, foi difícil ver o restante do enredo com bons olhos (ainda que a figura do olhar seja tão importante aqui).

Pequeno Manual Antirracista (Djamila Ribeiro)

Já tive a oportunidade de assistir a algumas falas de Djamila, que sempre são potentes e incômodas. E não é sem motivo: sentir-se incomodado durante uma apresentação de poucos minutos não passa nem perto de reproduzir todo o desconforto, violência e opressão de ser negro no Brasil. O Pequeno Manual Antirracista , por sua vez, tampouco é um livro com a intenção de guiar o branco a ser politicamente correto e estar em paz com sua consciência de classe e etnia. Pelo contrário: a obra vem para mostrar como o racismo se constrói estruturalmente e vai muito além da boa ou má vontade individual. Em poucas páginas, a autora nos leva a repensar muitos conceitos-chave na cultura do racismo e em como combatê-los. Além disso, traz um importante referencial para conhecer outras vozes fundamentais nesse debate.

Pedagogia do oprimido (Paulo Freire)

Apesar de ter estudado em uma universidade taxada de comunista pelos ideólogos do WhatsApp, a verdade é que pouco me lembro de ter visto a obra de Paulo Freire na licenciatura. Se não fossem os conservadores, talvez esse grande pensador brasileiro estivesse um tanto esquecido; assim, que eles levem consigo o mérito dessa redescoberta e dos novos estudos que estão em andamento sobre a vida, obra e metodologia freirianas. Tenho uma vaga lembrança de ter lido duas das pedagogias de Paulo, por conta própria, em algumas das minhas passagens pela biblioteca. Se não me engano, uma delas era a Pedagogia do oprimido , que, na época, não me causou grande impacto. Talvez me faltasse um referencial mais robusto para entender o quanto a educação que tive se apoiou em um modelo bancário (inclusive na universidade). A obra foi escrita em um período de fortes dissidências e perseguição política; não é à toa que parece dialogar tão bem com os tempos cindidos que vivemos hoje. No entanto, como é dito no

Los derechos imprescriptibles del lector (Daniel Pennac)

Manifesto sobre a leitura, o texto de Daniel Pennac (parte do livro Como una novela , publicada de forma independente) elenca dez direitos que todo leitor deveria ter. Assim como na obra de outro francês ( Como falar dos livros que não lemos? , de Pierre Bayard), é proposta uma inversão de valores sobre a suposta sacralidade do ato de ler. Dentre outras rebeldias, Pennac nos fala sobre o direito de pular páginas e de abandonar uma leitura ao meio. Apesar de despretensioso, é um livro importante para repensar nossos hábitos de leitura e como podemos fazer da escola um espaço de formação de leitores, e não de leituras obrigatórias.  

I will judge you by your bookshelf (Grant Snider)

Este é um livro perfeito para bookworms, com ilustrações encantadoras que retratam as agruras e delícias de viver entre as páginas de diversas leituras. Monotemática, é uma obra que funciona bem para os iniciados – para quem não entende as particularidades e manias de um bibliófilo, provavelmente muitas das intertextualidades e referências não farão muito sentido. Adorável para se ler aos poucos, entre uma xícara de chá e pilhas de livros ainda não lidos.

El amor en los tiempos del cólera (Gabriel García Márquez)

Minha iniciação com a literatura fantástica de Gabo foi há quase duas décadas atrás, com Cem anos de solidão  – que talvez tenha resistido a todo esse tempo como meu livro favorito. Ao reler O amor nos tempos do cólera (e agora em espanhol), tive de lidar com a incerteza se a obra ainda funcionaria para mim, colocando à prova o escritor de que tanto gostei na minha adolescência. É claro que um escritor do século XX não passa incólume aos julgamentos de nosso tempo; no entanto, uma vez que se trata de um autor que já faleceu, não podemos mais cancelá-lo; o que nos resta é repensar sua literatura e saber ler, com viés crítico, os preconceitos que carrega. Em alguns trechos, a releitura foi dolorida. Há cenas de pedofilia e de estupro que vão além de uma pressuposta imparcialidade do narrador, com uma naturalização obscena. No entanto, o livro é um retrato de todas as formas de amor (e da cólera que ele carrega). Nesse contexto, passagens injustificáveis são também um registro das formas