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Mostrando postagens de março, 2019

Cem poemas [antologia pessoal] + 22 inéditos (Maria Teresa Horta)

Maria Teresa Horta esteve recentemente em voga no meio literário brasileiro, graças a uma das mesas de debate da Flip 2018. A escritora portuguesa é dona de uma poética singular, proficiente no gênero breve e intenso da poesia. Cavalgando por redondilhas, frases curtas, incompletudes, Maria Teresa se increve no cenário poético com um estilo bastante definido, ainda que não de todo avesso a certo experimentalismo. O poema que abre a antologia - Mãe - dialoga com um dos versos mais conhecidos de Ana Cristina César: "e o único jardim de amor/ que cultivei/ de navios ancorados no espaço". E assim seguimos até o final do livro, com a voz de Maria Teresa intercalada a de outros tantos poetas - Sá Miranda, Camões, Ferreira Gullar... Organizada em ordem cronológica, a antologia consegue revelar o refinamento da percepção poética da autora ao longo de mais de 40 anos de escrita. Assim, a obra se torna a cada página mais envolvente e menos hermética, ainda que preserve como caracte

O menino que descobriu o vento (filme de 2019)

Conhecer a cultura produzida em outros cantos do mundo é uma atividade fundamental para desenvolver a empatia, colocar-se no lugar do outro. O ideal é que este contato se dê sem intermediários, vozes sobrepostas, filtros que selecionem o que é digno de ser visto e o que não é. No entanto, considerando o quanto é difícil conhecer produtos artísticos que fujam do eixo ocidental-branco-cristão, acabamos por nos contentar com tentativas de estabelecer esse diálogo, por mais falhas que sejam. "O menino que descobriu o vento" é um filme britânico, interpretado atores que não vivem na África, produzido por empresas como a BBC e a Netflix. Muito longe de ser um longa independente ou cult, ainda assim é uma das poucas obras que conheço cuja temática é o Malauí.  O enredo é baseado em uma história real de superação pessoal - um menino que, sem acesso ao ensino, conseguiu desenvolver uma bomba hidráulica para resolver o problema da seca nas terras em que vivia. Sem ser excessivo no

Memórias de um tradutor de poesia (Geraldo Holanda Cavalcanti)

Quinto volume de uma série que busca desvendar os bastidores do processo editorial, o livro consiste em uma longa entrevista com o tradutor e poeta Geraldo Holanda Cavalcanti, além de incluir como anexos duas transcrições de palestras. Para quem não conhece o trabalho do entrevistado, as rememorações da infância e juventude podem soar um pouco cansativas. No entanto, esta não é nem a maior e nem a parte mais importante da obra. As reflexões sobre o ato de traduzir poesia são predominantes, e muito agregam a quem se arrisca por essa área. Ao invés de se intitular teórico, Geraldo Holanda Cavalcanti se revela muito mais como alguém que entrou por um acaso na profissão, movido pelo interesse às particularidades do idioma. Assim, sua conversa sobre a tradução de poesia não tem um viés academicista (ainda que seja bem fundamentada nos escritos de Paulo Rónai e outros teóricos), tornando-a mais próxima do leitor: é um convite aberto a quem se interessa pela área.

The Wave (Todd Strasser)

Ao encontrar "The Wave" em um dos sebos que frequento, adquiri o livro por associação imediata com o excelente filme alemão de 2008. Ainda que não tenha me arrependido da leitura, cabe o alerta: a história dos alunos engolfados por um movimento de cunho nazista foi contada e recontada muitas vezes. Baseia-se originalmente na experiência real de um professor em Palo Alto, na Califórnia, em 1969, da qual se originou uma novela televisiva, que posteriormente foi transformada em literatura por Todd Strasser antes de virar o famoso filme (aliás, há mais de um longa sobre o fato). Nessa série de adaptações e versões, difícil saber o que resta de real. Para um roteiro de TV convertido em literatura, o livro de Strasser até que não é ruim. Ele funciona melhor com jovens, com um estilo muito similar ao das obras da Série Vaga-Lume, aqui no Brasil. Em uma leitura comparada com o filme, tem alguns elementos de interesse - ainda que o longa-metragem seja bem mais instigante.

Caramelo (filme de 2007)

Primeiro filme dirigido por Nadine Labaki, Caramelo  tem qualidades interessantes. Com um olhar talvez voltado a um público maior, a diretora preocupa-se em traçar um retrato do Líbano bastante palatável ao espectador ocidental. Temas como homossexualidade, adultério, sexo antes do casamento, negação da velhice são apresentados de uma forma mais aberta do que a que geralmente atribuímos a sociedades em que predomina o Islã. Bom para revermos padrões e ideias preconcebidas em relação a países tão diversos entre si. O longa tem um tom de drama leve que lembra o da série "Sex and the City". Sem grandes surpresas, não deixa de ser eficiente ao costurar um bom retrato de costumes de uma sociedade que ainda nos é tão desconhecida.

Capernaum (filme de 2018)

Uma experiência que me faz não tornar o cinema dispensável, por mais plataformas de streaming  que haja, é a possibilidade de compartilhar emoções durante a exibição de uma obra. No caso de Capernaum , tive a oportunidade de participar de uma verdadeira sessão de catarse - que talvez só consiga comparar ao que foi assistir ao filme Dançando no escuro . No entanto, ao contrário da obra ficcional de Lars von Trier, este longa libanês é quase um documentário, de tão calcado que é na realidade - e, sendo assim, consegue machucar ainda mais. A cena inicial, que já me fez chorar aos primeiros minutos da exibição, condensa muito do que se pode esperar dessa obra de arte magistral. Enquanto uma música de fundo incrível toca, vemos meninos libaneses brincando de guerra, com armas fabricadas com pedaços de madeira. Conforme a câmera se afasta e captura um plano maior, somos apresentados à imensidão da miséria e vemos o quão alegórica é a cena dos garotos pobres tentando mimetizar a violência

Manuelzão e Miguilim (Guimarães Rosa)

Meu primeiro encontro com "Manuelzão e Miguilim" foi durante a faculdade de Letras. Na época, ainda que a leitura tenha me marcado, situava-me no entrelugar: sem ter a inocência plena de Miguilim e nem a onisciência do narrador. Mais de uma década depois, começo talvez a vislumbrar a potência da linguagem roseana - poucas vezes me envolvi e me doeei tanto quanto nesta releitura. Em "Campo geral", a história do menino Miguilim, defrontei-me com esse narrador que sabe tão bem ser ambíguo e indevassável. Sem entregar o jogo, expõe a simplicidade das formulações infantis ao mesmo tempo que enriquece as entrelinhas com o subtexto poderoso.  Em uma das primeiras cenas, quando o Tio Terêz é obrigado a deixar a casa da família, Miguilim tudo nos revela,  mesmo sem saber o porquê da mudança : a oposição de um tio amoroso ao pai bruto das crianças, a beleza e jovialidade da mãe, a vingança prestes a se desenrolar. Pela percepção do olhar infantil, o leitor adulto consegue

Amor e revolução (filme de 2015)

Lançado quatro anos após o último filme da saga Harry Potter, é difícil não ver em "Amor e revolução" uma tentativa de Emma Watson de se firmar no papel de uma protagonista adulta - que trabalha, faz sexo, participa da revolução. Ainda que goste muito da personalidade, não consigo me envolver o suficiente com a interpretação da atriz (mesmo que os papéis que escolha sejam sempre tão carregados de potencialidades). "Amor e revolução", péssima tradução para o título original ("Colonia"), traz à tona a história de uma aeromoça que, buscando encontrar seu companheiro durante a ditadura chilena, resolve infiltrar-se em um culto religioso bastante questionável. Para quem está imerso no contexto das ditaduras latinas (e a quem o filme mais poderia interessar, portanto), é frustrante acompanhar todo o desenrolar da narrativa em inglês, com um ou dois " ¡ Viva Chile!".  Além disso, as reviravoltas da trama são bastante inverossímeis e pouco convenc

A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes (Dostoiévski)

Quem já leu a novela "O sonho do titio" (compilada na obra "Dois sonhos", pela ed. 34) encontrará muitas semelhanças neste escrito posterior de Dostoiévski. Ainda que não se trate mais do mesmo gênero literário (com mais de 350 páginas e uma ampla gama de personagens, define-se melhor como romance), a construção de arquétipos e o o tom humorístico se mantêm. Minha experiência pessoal de leitura do autor está sempre marcada pelo incômodo. Assim, mesmo em uma obra mais leve (como é o caso), o trajeto pela escrita de Dostoiésvki é conturbado, aflitivo. Os tipos cômicos presentes na obra também podem ser lidos pela chave do personagem desajustado, inapto para conviver em sociedade, e pelo diálogo com seus duplos. O livro antecipa algumas críticas mordazes que serão retomadas posteriormente na obra do russo, como a ridicularização da intelligentsia  e do viés ocidentalista da burguesia. Romance interessante pelo retrato histórico, pode causar sim algumas boas risadas