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Mostrando postagens de dezembro, 2019

Ricardo III (Shakespeare)

Ricardo III é um livro sobre a arte da persuasão, empregada em um contexto político no qual os personagens estão em permanente embate pelo desejo de ter mais poder. Desde as primeiras falas, o discurso eloquente do protagonista nos abarca totalmente; assim, até a dificuldade inerente à trama (que apresenta uma quantidade enorme de personagens e um contexto histórico muito distante de nossa realidade) é amenizada pelo interesse que gera. A rápida ascensão e queda de Ricardo III é uma alegoria exemplar das ambições humanas, frágeis e passageiras. Assim, a famosa interjeição "Meu reino por um cavalo!" é o fecho de uma narrativa permeada de arrependimentos e que expõe a público a tolice de nossas vaidades.

Macbeth (filme de 2015)

Não consigo pensar em uma releitura mais adequada para Shakespeare do que a que é proposta neste filme. É claro que as obras do bardo inglês propõem inúmeras possibilidades de interpretação; no entanto, se mantido o contexto histórico no qual se desenrolam, dificilmente encontraremos outro longa tão bem-sucedido. Com uma fotografia sombria, a produção dá a ambientação adequada para a tragédia. As falas, reproduzidas tal qual aparecem no texto original, se aproximam muito da representação teatral para a qual inicialmente foi destinado. Forte e profundo, o filme sabe casar bem com as palavras do renomado inglês.

ABC of reading (Ezra Pound)

Conhecido no mundo das letras por seus posicionamentos políticos questionáveis (quando não deploráveis), Ezra Pound é uma figura que incomoda. O mesmo sentimento se aplica em relação aos seus escritos sobre literatura, bastante enviesados (quando não autocentrados). No entanto, o tom petulante de Pound não deixa de dar a graça a um livro que é essencialmente feito de crítica literária. Longe do tom sisudo da academia, a obra acaba sendo uma delícia de ler - mesmo que tantas vezes discordemos das generalizações e dogmas de seu autor. Calcada na ideia de uma boa literatura que engloba um círculo muito restrito de autores, é uma obra que perde muito com o olhar mais crítico que nossa modernidade exige. Ainda assim, não deixa de ser um bom livro para iniciar a leitura mais atenta de poemas.

A ascensão de Skywalker (filme de 2019)

Fim da saga mais recente de Star Wars, provavelmente não é o melhor da trilogia - afinal, em um mundo complexo e dinâmico como o criado por George Lucas, o natural é que sobrem pontas soltas e dúvidas ao término de um arco narrativo. Dentre os três filmes, provavelmente este é o mais divertido; há tantos alívios cômicos ao longo das 2h20 de exibição que a obra até perde um pouco o caráter de jornada épica. Não deixa de ser interessante como entretenimento, mas decai muito em qualidade em relação ao segundo filme.

A vida invisível (filme de 2019)

Os primeiros minutos de "A vida invisível" me deixaram ressabiada; afinal, um dos indícios de uma adaptação mal-sucedida de livro para as telas costuma ser a voz do narrador transposta tal qual aparece na obra literária: uma enunciação onisciente e que claramente lê trechos do livro-base enquanto as cenas se desenrolam. No entanto, em pouco tempo a produção desfaz essa má impressão inicial para se tornar uma obra de arte bem pensada e que tem sim uma linguagem própria muito bem trabalhada. Com atuações potentes (para não dizer da participação brilhante de Fernanda Montenegro), o filme sabe como conquistar o espectador. De todos os aspectos que me agradaram, o que mais me tocou foi a visão particularmente feminina da realidade. Várias opressões e angústias que afligem o gênero são delicadamente retratadas, de uma forma sutil (mas que não se abstém de ser politicamente demarcada).

Uma beleza fantástica (filme de 2016)

Dentre os aforismos de Cícero, há um que diz que quem tem uma biblioteca e um jardim não precisa de mais nada. Esse mote poderia ser utilizado para resumir bem o filme em questão, que realiza um passeio prazeroso por esses dois aspectos da vida. Ainda que bastante fofinho, o longa não é de todo previsível; deixa como surpresa a resolução inusitada de um triângulo amoroso e o fato de escolher uma protagonista com alguma síndrome, que não chega a ser nomeada. Simples e belo, é um filme que rende bons frutos.

Um dia de chuva em NY (filme de 2019)

Talvez a diferença no recorte temático deste filme de Woody Allen seja a apresentação de um triângulo amoroso com personagens na casa dos 20 anos; de resto, a produção segue vários dos recursos empregados pelo diretor em suas últimas obras: diálogos rápidos, cenas água com açúcar, romances e traições. Selena Gómez é o ponto alto do filme, com uma interpretação justa para a personagem que lhe cabe. Fora isso, é mais do mesmo (com um recorte bastante misógino das relações amorosas).

Parasita (filme de 2019)

Assim como o excelente "Corra!", esta produção sul-coreana pode ser considerada um filme de terror com abordagem sociológica. Portanto, muito mais terrorífica que monstros ou assassinos em série é a realidade de nosso sistema social - na qual os excluídos são permanentemente relegados à miséria para manter o poder de poucos. Boa parte da fotografia da obra é iluminada, brilhante; tal como o mundo de ostentação de retrata, apaga e expulsa do ambiente refinado tudo que é sombrio. Aos poucos, no entanto, a sujeira inevitável aparece na fundação do lugar de conforto. Afinal, a base de todo conforto é a exploração e a miséria.

Madame & Monsieur Adelman (filme de 2017)

Repleto de referências literárias, "Madame & Mounsieur Adelman" é um filme dinâmico e instigante, que prende a atenção do espectador por meio de sua linguagem cinematográfica acurada.  De certa forma, o filme retoma a tradição recente de trazer à tona a história de mulheres que abdicaram da fama em favor de seus maridos; no entanto, na obra essa perspectiva ganha novos ares, sem cair no clichê da submissão. Agradável de assistir (mesmo que narre uma história de amor permeada de intrigas e mentiras), é uma produção contemporânea que sabe dialogar com a modernidade de nossos relacionamentos.

Vincent (Barbara Stok)

O traço de Barbara Stok parece remeter a uma abordagem mais infantil da vida de Van Gogh; no entanto, basta folhear algumas páginas para vermos o quanto essa ilusão é falsa. Por trás de uma ilustração aparentemente mais simples, pulsa a vida conturbada do artista retratado. O ponto mais interessante da obra é a inserção de trechos de diários do pintor holandês, o que amplia a credibilidade da abordagem artística levada a cabo.

Ayako (Osamu Tezuka)

História de uma família em declínio, mas também história do Japão no período pós-guerra, este longo mangá de Osamu Tezuka é uma jornada por histórias intrincadas de vida, marcadas pela desolação, violência e abandono. O retrato de uma grande família reverbera na narrativa de um país que, após ser destruído pela guerra, volta a se desenvolver sob o aval de outras potências. Permeada de conflitos, a obra é uma rica imersão cultural na história do Japão.  

Êxtase da transformação (Stefan Zweig)

De Stefan Zweig, até então apenas conhecia o início da autobiografia "O mundo de ontem"; e o que me levou a interromper sua leitura foi o desejo de realizá-la em meio impresso, para poder grifar livremente as várias excelentes frases com que me deparei. Em "Êxtase da transformação", a vontade de marcar o livro inteiro continua. A prosa de Zweig é límpida, sem perder a ironia e o sarcasmo que lhe constituem.  O livro divide-se claramente em duas partes, que não só contemplam estilos de escrita diferentes como foram compostas em fases distintas da vida do escritor. Ao final, o que domina é o tom profundamente melancólico que levaria Zweig a se suicidar com a esposa - suicídio já previsto neste romance, sob a forma de ficção.

O mundo se despedaça (Chinua Achebe)

O romance de estreia de Chinua Achebe traz um tom quase antropológico, ao revelar aspectos da vida no território africano ocupado pelos igbos antes da chegada do colonizador. O que dá força à obra é que, por mais que seja uma literatura reivindicatória, não idealiza a vida que existia antes do choque violento com a cultura do homem branco. Para mim, foi uma leitura muito envolvente, ainda que altamente descritiva. Boa parte da obra não arma grandes suspenses ou cria conflitos insolúveis; o que predomina é o acompanhamento da vida tal qual ela se desenrola. Ao final, conforme o contato com o colonizador vai se tornando mais agressivo (mesmo que mascarado pelas supostas boas intenções dos missionários), o livro ganha enormemente em força. O desfecho da trama, nas últimas páginas, é um dos melhores com os que já me encontrei.

Solitário (Chabouté)

Não só o traço do artista Chabouté é riquíssimo, como ele sabe muito bem como empregá-lo como recurso narrativo. Essa característica, somada à força da história desenvolvida em "Solitário", fazem que a hq em questão seja uma pequena obra-prima. Pouco sabemos sobre os poucos personagens que protagonizam o livro; no entanto, é através das pistas deixadas pela ilustração que criamos nosso próprio desenho mental sobre a trama - tão lacunar e, ainda assim, tão completa.

Extremely Loud and Incredibly Close (Jonathan Safran Foer) + filme de 2011

Bastante tempo após a leitura, ainda não me decidi se gostei ou não deste meu primeiro contato com o autor Jonathan Safran Foer. Há um aspecto de entretenimento no livro que é inegável, motivando-me a continuar a leitura mesmo sem saber julgar a qualidade geral da composição do livro. Composto de recortes, fotografias, rabiscos e garatujas, o romance aposta em diferentes materialidades (assim como em diferentes vozes narrativas). Típico filho da contemporaneidade, é um livro sem uma unidade muito definida; no entanto, ainda assim o autor parece conseguir amarrar bem esses elementos tão diversos com alguma coesão. O filme de 2011 é um bom complemento audiovisual à leitura, mas está longe de ser imperdível. 

Línguas, poetas e bacharéis (Lia Wyler)

Panorama da história da tradução no Brasil, o esgotadíssimo livro de Lia Wyler é uma importante referência na área. Ainda que seja composto de curtos artigos e não se pretenda a palavra final sobre os temas abordados, o conjunto é farto em referências e curiosidades tradutológicas. Desde o primeiro contato dos indígenas com os portugueses até a regulamentação da classe nos anos 1970, a obra acompanha as variações que a profissão sofreu ao longo do tempo. Ao lê-la, podemos observar o quanto esta tarefa indispensável ao desenvolvimento dos povos pareceu sempre desvalorizada - eternos conflitos da Torre de Babel.

Bocas del Tiempo (Eduardo Galeano)

Ainda que por vezes oscile entre o sublime e o clichê, Eduardo Galeano é um autor de indiscutível qualidade literária - para não falar de sua filosofia profunda e acessível. No conjunto de pequenas crônicas "Bocas del tiempo", o autor passeia por diversos temas que permeiam as relações sociais e o nosso ser e estar no mundo. O pano de fundo da maioria dos textos é a desigualdade social que constitui a América Latina, marcada por coronelismos e uma perene submissão às nações de maior poder econômico. Assim, os escritos do autor uruguaio são um ótimo meio de reconhecer nossa latinidade - nossos mesmos problemas, nossas mesmas dores.

O homem irracional (filme de 2015)

Se já não conhecesse "Match Point" (um dos meus filmes preferidos de Allen), talvez não tivesse desgostado tanto de "O homem irracional"; no entanto, ao comparar ambos, é difícil não sair com a impressão de que o segundo é um pastiche mal elaborado, uma variação desnecessária sobre um mesmo tema. Ainda que a atuação de Joaquim Phoenix seja forte o suficiente para prender a atenção do espectador, a trama é bastante pobre. Além disso, a figura da narradora/protagonista (interpretada por Emma Stone) é de grande futilidade. Aliás, nos últimos filmes do diretor, a misoginia que lhe caracteriza cada vez mais tem saltado aos olhos, com personagens infantilizadas, dependentes, românticas, inseguras - destinadas a girar em torno dos homens da trama. Mesmo que possua um ou dois diálogos que valem a pena, no geral é um filme fraco.

Frankenstein (Mary Shelley)

No prefácio à edição da Penguin, a escritora Elizabeth Kostova narra sua surpresa ao reler o clássico de Mary Shelley - afinal, sua pretensa releitura nada mais era do que o contato inicial com a obra. Clássicos incorporados à mitologia popular têm o poder de criar narrativas prévias à trama inicialmente idealizada por seus escritores. Quando falamos de obras impossíveis de catalogar no que tange às suas releituras e adaptações, as intertextualidades que as antecipam são ainda mais potentes. "Frankenstein", no entanto, é uma obra que não decepciona um leitor que tenha criado altas expectativas sobre a trama original. Pelo contrário: o livro só cresce ao descobrirmos o quanto sua narrativa foge ao senso comum em relação à criatura gerada pelo dr. Frankenstein. Além da confusão habitual que leva a nomear o suposto monstro com o mesmo sobrenome de seu criador, outra surpresa da obra é descobrir o quanto há de mais monstruoso na figura do cientista do que em sua criação.

A morada de Tupã (Antônio Ferreira Júnior)

Não é de boas intenções que se faz a boa literatura infantojuvenil - por mais que este julgamento se aplique principalmente à multitude de livros moralistas para crianças, ele não pode deixar de ser válido quando trabalhamos com temáticas mais progressistas. Antes de terminar este livrinho, já sabia que seu autor não era indígena. Quase não há estranhamento em relação à narrativa, que se acomoda muito bem ao molde dos valores cristãos ocidentais. Trabalhar a diversidade pelo ponto de vista do mesmo não me parece ser a forma mais adequada de abordagem para pautas de tanta importância.

The Clothing of Books (Jhumpa Lahiri)

Jhumpa Lahiri, mais do que ser uma autora cuja temática principal é a migração, coloca-se permanentemente na posição daquele que é o outro, o diferente, o alheio a uma cultura. Por meio de sua obra, repensamos as questões da nacionalidade e do pertencimento de forma profunda, quase sempre dolorida. Indiana criada nos Estados Unidos, Jhumpa já traz, desde as primeiras memórias, a mescla de culturas e raízes. Após a publicação de seus livros iniciais, decide refazer esse percurso de impermanências por conta própria; assim, a escritora abandona mais uma vez suas raízes para viver na Itália, onde passa a publicar no idioma italiano. "The Clothing of Books" é uma das primeiras tentativas da escritora nessa nova língua. Assim, ela parte de um assunto que domina (os livros) para compor suas reflexões em um idioma que lhe foi estranho durante muito tempo. Dessa forma, este experimento resulta em um livro extremamente claro, com frases sucintas e muito polidas. Contudo, mesmo dent

A casa de papel (Carlos María Domínguez)

Esta novela do uruguaio Carlos María Domínguez é poderosa para discutir literatura, além de ser uma delícia para todos aqueles que vivem imersos no mundo das bibliotecas. Em poucas páginas, nos deparamos com a questão da materialidade do livro impresso, do academicismo em torno das leituras, dos laços que envolvem a vida do leitor e a vida do livro... Todos esses temas são desdobrados sobre o pano de fundo de um pequeno mistério a ser desvelado. Dessa forma, acompanhamos o personagem principal no processo de suas descobertas - sempre relacionadas à literatura. Uma pena que a única edição disponível no Brasil tenha vários probleminhas de revisão, apesar de ser tão ricamente ilustrada. Ainda assim, é uma obra altamente grifável - daquelas que nos faz quer registrar cada frase, cada pensamento deste livro sobre livros.

Romancista como vocação (Haruki Murakami)

Gosto do estilo fluido de Murakami, que supera as inverossimilhanças e descrições supérfluas que encontramos ao longo de sua obra. Ainda que o considere mais um autor de entretenimento do que produtor de uma literatura complexa, acabo me rendendo à leitura de seus livros quase todo ano. Seu jeito de compor a narrativa faz que ela seja rapidamente absorvida, criando um vínculo prazeroso entre autor e receptor. Do conjunto da produção, o livro de que menos gostei foi justamente este "Romancista como vocação". Esperava encontrar neste pequeno livro algumas das reflexões pertinentes com que havia me deparado no excelente "Do que falo quando falo de corrida"; no entanto, ao retomar pensamentos sobre sua carreira literária, aqui vemos um Murakami mais amargurado, irônico, tentando disfarçar sarcasmo com um pretenso tom de impassibilidade. Questões como a eterna indicação ao prêmio Nobel são trazidas à tona, com um desprezo mal escondido em relação aos críticos. O que

Paletó e eu (Aparecida Vilaça)

Julgando pela capa, ao ver o lançamento da editora Todavia não me interessei pela leitura da obra; a temática abordada (uma etnia indígena específica) e o campo de atuação (antropologia) em princípio não dialogaram comigo. No entanto, após ver a apresentação de Aparecida Vilaça na Flip, não tive como não ser fisgada pela proposta deste livro. "Paletó e eu" é um canto fúnebre - uma narrativa que tenta dar conta da emoção da autora ao descobrir que seu pai indígena havia falecido. No percurso afetivo que o livro traça, somos conduzidos não só para o interior da família pluriétnica de Vilaça, mas também nos aproximamos do campo instigante da antropologia (essa fascinante ciência da alteridade). Ainda que pautado pela emoção, o livro é uma obra poderosa também para discutir questões ainda mais profundas - como o massacre dos indígenas ao longo da história e sua aculturação pelos evangelizadores.  Com momentos de humor (como o de Paletó explicando o porquê de seu apelido), f

Colette (filme de 2018)

Colette  narra a história real de uma escritora que, durante muito tempo, escreveu como ghostwriter  do próprio marido, sem receber a fama que lhe era devida. Narrativas similares têm pipocado aqui e acolá, numa tentativa de resgatar personalidades que foram apagadas em seu tempo. A figura da protagonista é bastante ousada, surpreendendo o espectador com as mudanças que sofre ao longo do enredo. No entanto, se a temática que o filme aborda é de fuga aos padrões e irreverência, o mesmo não se aplica à sua forma. É uma produção que segue uma narrativa linear, sem inovações no plano técnico (o que torna a história previsível em certos pontos). Vale como biografia de uma mulher à frente de seu tempo, mas está longe de ser um filme imperdível.

Intérprete de males (Jhumpa Lahiri)

Coletânea de contos bastante sucinta (com pouco mais de 100 páginas), "Intérprete de males" é a estreia de Jhumpa Lahiri no meio literário. Muito mais do que vícios de um autor iniciante, o que encontramos na obra são as temáticas que serão retomadas pela escritora - com igual afinco - em publicações posteriores. São contos em que a alteridade é trabalhada de diferentes formas, mas quase sempre gerando choque e confronto. Não encontramos neste livro de Jhumpa nem a falácia de uma cultura democrática e pronta a acolher o diferente, nem excessos na caracterização daquele que é estrangeiro. Uma das marcas mais interessantes em sua escrita é o uso de poucos, mas incisivos elementos para caracterizar seus personagens. Esse recurso fica ainda mais evidente nos excelentes contos que são narrados sob a perspectiva de uma criança - nos quais a estranheza de pequenos gestos e objetos é ampliada pelo olhar daquele que descobre o mundo (e, junto a ele, o que nos aproxima e diferencia

Coringa (filme de 2019)

Há tempos não me interesso por filmes de super-heróis; até tentei dar uma chance ao ganhador do Oscar, mas só aguentei meia hora de exibição do premiado Pantera Negra . Mesmo quando aborda pautas que vão além da glorificação dos Estados Unidos - como o empoderamento da Viúva Negra ou as causas raciais do Pantera -, elas servem apenas de leve maquiagem para o enfoque principal: um mundo de vilões e mocinhos bem definidos, com necessidades individualistas que precisam ser preenchidas para garantir o funcionamento da máquina mercantil. Nesse contexto de obras repetitivas em sua abordagem, "Coringa" faz a diferença. Por ser um filme que traz apenas o vilão da história - e que, de certa forma, procura humanizá-lo -, leva o espectador a refletir sobre os novos valores morais com que se defronta durante o longa. Por não ser precisa nos contornos que separam o bom do mau, a produção nos leva a questionar quais são as causas pelas quais é digno (ou necessário) lutar. Ainda que o f